(Continuação)
...Porque ignorava a vida que florescia em minha época e ao meu redor? Acho que isso fazia e ainda faz parte da minha estrutura, do meu caráter: eu sempre nego, eu sempre me afasto. Até então não sabia que me afastava de mim mesmo e que carecia de um grande amadurecimento, até mesmo para desenvolver alguma sensibilidade. Olhava maravilhado com as coisas antigas, entulhos de culturas e civilizações mortas: tudo esterilidade, tudo sonho. Eu sempre tive esse olhar apreciador de sonho e fantasmagoria; sempre fui atrás dessas coisas, como um biólogo de organismos que nunca mais procriarão sobre a terra. O passado dos gregos, os versos dos góticos, a ilusão ou a psicodelia dos simbolistas, dos orientalistas daquela Europa decadente, rumo ao otimismo da razão, tudo isso fazia parte de mim, ainda que agregados de afirmações que muitas vezes conflitavam, ainda que pequenas contradições das quais eu era ignorante, toda essa formação literária e artística foi puro amadorismo e vaidade.
Essa vaidade, de crer que qualquer época era mais alta e elevada que a minha, pode muito bem ser um subterfúgio que criei dentro de mim, inconscientemente. Queria, de uma forma velada, fugir dos meus problemas, fugir dos meus próprios conflitos com o mundo, com meus pais, fugir de um enfrentamento que definiria se eu era apto para defender minha própria liberdade ou não. Sobretudo queria fugir de mim. Estava tudo tão bom, tudo tão bem. Eu era um gênio, um gênio precoce. Escrevia poemas barrocos, ditos dificílimos. Lia Baudelaire e Rimbaud, e conhecia alguns truques de ‘Um Lance de Dados’, mas nada entendia, no âmago, que aquela arte era um grito humano, um movimento que viria a fazer parte de mim, que era suor e dedicação de um espírito preocupado, ou com o centro dos problemas do mundo, ou com o seu próprio epicentro. Agora, vendo melhor, percebo que nada daquilo fazia parte de mim. Eu fingia que lutava pela identidade e pela arte, que era um salvador, mas pff, que bobagem! Eu não compreendia que a maior reação estava dentro de mim, e entre mim e o verdadeiro espírito daquilo que chamo de arte.
Arte? Arte é beleza? É belo por quê? Essas perguntas surgiram dentro de mim quando li Nietzsche, pela primeira vez. A beleza em mim lentamente surgia, o amadurecimento da minha sensibilidade, como conseqüência de uma transformação: eu estava começando a pensar sobre mim, sobre o que era eu no meio daquelas letras, e o que era eu situado em minha época. Esse sutil mergulho na realidade é o início de um amadurecimento e também construção de um verdadeiro vínculo com a arte: antes meu senso crítico notava apenas os notáveis. Agora começava a absorver o meio, a decantá-lo pelo meu estilo e, antes de tudo!, pensar meu próprio estilo. Aos 18 para os 19, começava a pensar sobre a partícula verbo, a partícula letra. O que era aquele instrumento de comunicação? Como funcionava? Por quê? Qual era o impacto na cabeça das pessoas que o liam? “Arte? Arte é beleza? É belo por quê?”. Essas foram as perguntas que deram base ao meu senso crítico, que apenas aí começava a ganhar algum fôlego. Senso crítico para me posicionar diante de algo e identificar esse algo, mas para tanto era preciso que eu começasse a pensar sobre mim. Crítica, ao menos na arte, pra mim sempre tratou de um mergulho, como o mergulho de Rimbaud. Na própria Arte dei esse mergulho, do qual não voltaria o mesmo. Mais do que um mergulho no Inconsciente, ou num trago de veneno, estimulava uma percepção investigativa e o meu amor pelo sonho. Dessa vez era diferente.
Dessa vez o sonho não era um paraíso artificial, mas justamente um símbolo daquilo que eu era. Sonhos, como linguagem criptografada do ser? Freud aprovaria, com certa insegurança (porque ele mesmo desconhecia o verdadeiro inconsciente, o espaço infinito e negro que poderíamos comparar ao próprio universo), mas em mim, nessa época, já não precisava de sua aprovação. Eu estava adquirindo autonomia. Minha crítica começava a se desenvolver, ganhar forma, e os primeiros agrupados de músculos sobre esse esqueleto do onírico foi a psicanálise e um amor pela psicanálise. Estudei o que pude e comecei a treinar a minha percepção para as coisas que estão por trás das coisas. Paranóia, talvez. Esquizofrenia. Não sei. Mas cada vez mais em contato, não com pessoas, mas comigo mesmo, fui entendendo o funcionamento de todos os mecanismos com os quais me defendia e fui entendendo que, análogo a uma obra de arte, eu também era uma pintura! Eu estava emoldurado em minha carne, em meus desejos declarados, em minha aparência, nas minhas atitudes, e tinha por cores e traços aquilo que não mostrava, aquilo que era revelado apenas de mim para mim. Entendi, finalmente, que o ser humano é uma verdadeira peça artística, e que sua psique, dilacerada pelos preceitos morais, dilacerada pela época como Dionísio o foi pelos Titãs, é a obra em si: as cores, a textura do papel, os traços e as motivações grafadas seja em símbolos, seja em uma planície revolta pela tempestade; a psicanálise foi, ainda que estudada por superfície, o meu primeiro instrumento de investigação, antes de tudo, de mim mesmo. Baseava-se em uma honestidade sem precedentes, uma honestidade para comigo que me fazia admitir e buscar, mesmo que quebrasse a cabeça com enigmas, mesmo que resistisse às verdades, a causa e o efeito de tudo. Buscar causa e efeito e disciplinar meu olhar para ir, precisamente, àquilo que me instigava e bloqueava-me. (continua próximo post)
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