segunda-feira, 29 de junho de 2009

Não vês que eu sou apenas um animal ferido?

Desculpe-me, mas não consegui vê-lo. É tanta meiguice, tanto carinho que me deu, que mais me parecia saturada do amor. Parecia mesmo. Um anjo. Um anjo que descia até a minha terra, tomava delicadamente meu rosto entre suas mãos e o acarinhava, e o acarinhava, e o acarinhava... Não fui capaz de ver o fundo do teu oceano. Choravas por dentro? Guardas cicatrizes como o cervo que escapou ferido das mãos do caçador? A vida não te deixou ilesa.

Mas... Agora que penso, não será tanto amor e proteção um pedido silencioso? Assim como o argumentador ferrenho, mas em dúvidas, parece argumentar contra seu próprio coração, e suas palavras parecem desejar ecoar contra suas próprias dúvidas, teu carinho parecia pedir pelo meu. Eu não te dei, Anjo? Julguei-te forte quando estavas fraco? Tua asa foi ferida pelo meu egoísmo, essa faca sem dentes, tão serena e afiada.

Tu foste forte, meu animalzinho ferido. Mais forte que a tua fragilidade, por tê-la dobrado em duas, por tê-la arrebentado tantas vezes em nome de ser forte. E foste forte quando parecia fraca, porque tiveste coração para entrar em combate contra teus medos e teus receios. Tuas lágrimas deixaram trilhas cristalinas abaixo dos teus olhos. São as marcas da coragem que eu vejo e que adoro.

Hoje acordei especialmente pensando em ti, meu animal ferido. Aliás, certa vez me disseste que era um pequeno animal ferido. Que era apenas esse animal ferido, que pedia para ser amado. Como não entendi semelhante pedido feito com olhos de criança e de mulher? Teus olhos brilhavam, mesmo por cima da capa castanha escura da íris. Tantas vezes tentou esconder através desse espelho negro as tuas dores, mas a mim a revelaste. Não compreendi.

Mas agora compreendo, agora que penso em ti, em ti mais distante, em ti como uma criança, uma criança bem lá no fundo, que delicadamente acarinha seus ferimentos. Você julga ter amadurecido rápido demais, mas eu noto algo de infantil e terno, de frágil e limpo através dessa casca.

Hoje acordei de um sonho, desejando ter teu coraçãozinho pulsando novamente em minhas mãos. Será possível que eu o tenha uma vez mais? Será que terei alguma chance de lamber tuas feridas, remover-lhe o sangue com o calor da minha língua e do meu abraço? Eu te amo... Mas talvez isso não seja o bastante.

domingo, 28 de junho de 2009

É bizarro, mas acho que sou emotivo demais. Hoje tive sonhos tão ruins... e tão prolongados. Pareciam um filme. Eu fiquei profundamente tocado por eles, e por causa disso meu dia tem sido horrível. Estou esmagado pelos meus medos.

É engraçado isso... alguém que se dê ao luxo de sentir medo. Eu sou frágil, lá no fundo. Começo a entender a extensão dessa fragilidade toda a vez que me esbato contra ela.

Mas eu decididamente mereço passar por isso. Se existe um Deus, ele me julgou apropriadamente forte para me bater contra esse obstáculo.


Que vença o melhor.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Fábula do Grande Homem

Certo homem sentia-se fortemente pungido pela desolação. Isso porque há muito ele tinha percebido que os homens os quais conhecia chegavam até ele pequenos, ingênuos, ignorantes, limitados e obtusos; mas depois, conforme a amizade entre eles se estreitava, tais homens iam se tornando cada vez maiores, mais experientes, mais conhecedores, com horizontes mais amplos e capazes de raciocínios mais argutos e sofisticados. Tal homem então invejava a rápida ascensão e o grande progresso desses seus amigos, ao passo que notava que com ele o mesmo não acontecia, nenhuma grande modificação se operava em sua inteligência e em sua sabedoria. Certa noite, esse homem, enquanto buscava esquentar-se do imenso frio de seu espírito junto a uma fogueira; e[nquanto] contemplava, com melancolia, as chamas a sua frente, os olhos umidecidos pelas lágrimas, ouviu o fogo lhe falar: Por que sofres, ó grande homem? Não te apercebes que também eu nunca ganho mais calor do que sempre tive, ainda que tudo o que de mim se aproxima chega a mim mais frio e, gradativamente, vai tornando-se mais quente? Como poderia eu, que sou quente por natureza, querer tornar-me mais quente do que sou e do que sempre fui? Saiba que não há deus que não conheça o teu pesar e que todos eles te acariciam o rosto e te enxugam as lágrimas! Contenta-te, ó grande homem, em, assim como eu, ser a fonte de onde irradia aquilo que, para os que se chegam junto de nós, lhes faz falta! E, sobretudo, conserves na memória a lembrança de que sempre que teus amigos partirem abundantes do que antes careciam, foi em ti que eles se fartaram! E nessa lembrança encontrarás a plenitude e a satisfação daqueles que são aquilo que são em virtude de sua própria natureza!
Douglas Hugentobler Gimenis

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Meu grande segredo...

Eu vou te revelar agora, que estamos mortos um para o outro e que não temos hora e nem lugar para voltármos à vida. Vou te revelar o segredo que eu mesmo descobri, hoje... a mãe de todas as ironias.

Quando te falei em força, equivoquei-me com esse conceito. Ser forte... ambos nós dois? Será que nunca fomos fortes? Será que somos mesmos fracos? Eu fui fraco te pedindo para ser forte. Eu fui fraco desejando ser forte. E sabe porque? Porque "ser forte", inconscientemente, muito sutilmente, me abriu uma saída, um escape, para não assumir uma responsabilidade que era enorme e pesada, e que só agora me dou conta do quão grande e pesada ela era: cuidar do teu coração. E isso envolve tantos nervos, tanta força, tanta paciência! No fundo quis te embrutecer, embrutecer nosso amor, e acabei o destruindo. Não foi assim? Fui fraco desejando que fôssemos fortes quando, a força, ela na verdade existia enquanto cultivássemos a idéia de que um precisa do outro. Penso que a vida solitária é o caminho dos fortes, mas não é bem assim: cuidar do coração de uma pessoa necessita de uma força duplamente maior.

domingo, 21 de junho de 2009

Distração.

Realmente estou bem, agora. Ando me distraindo bastante. Parei de ter sonhos ruins, parei de ficar angustiado e inquieto. Já não ando mais por aí, nem como pouco. Tomo banho todos os dias, e sempre estou perfumado.

Ando pensando em mudar minha aparência, mas não sei como. Também ando com interesse por romances históricos (ando lendo Tristão e Isolda), principalmente os medievais. São legais.

O problema é essa anestesia... Soterrar-me desse jeito não é necessariamente ficar bem. Está funcionando, ao menos... entretanto... e depois?

Tenho uma porção de trabalho amanhã. Isso anda me preocupando, porque o meu marasmo afetou e muito o meu desempenho. Ao menos os professores (alguns deles) estão me vendo com bons olhos pelo seminário e pela apresentação que fiz.

Sei que estou seco, mas não ando afim de me entusiasmar. Estou tranqüilo, mas não posso dizer que estou lá muito feliz. Sei que vou ficar bem.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

O Mercador de Perfumes

Não vejo como é possível que ele não conheça o valor do seu trabalho. Sua aparição me é estranha, assim como o seu turbante encardido: aparecia-me durante minha extensa caminhada. Era um mercador de perfumes.

Foram apenas dois dracmas dourados, quase que um óbulo infantil pela minha viagem. O frasco era pequeno. Ele nada disse sobre tal perfume.

Perguntei-lhe onde haveria outra terra em que pudesse repousar, ou um oásis com água e raízes profundas na terra. Ele nada me disse sobre tal lugar.

Apenas apontou, creio que aleatoriamente, para um lugar que certamente morria no palco de mármore que era o horizonte.

Perguntei-lhe se as muralhas de vidro que erigi sobre meu coração poderiam ser quebradas; se tal fragrância era composta com apenas as essências mais benevolentes dos mortos.

A esta pergunta, disse-me: "Derrama teu perfume e deixe que a areia o beba. Trata-se do perfume que os deuses mandaram-me vender para ti. Não há terra que convém te abraçar enquanto o perfume não tiver sido derramado, gota por gota, sobre o solo."

Eu poderia ter derramado todo o frasco de uma só vez, mas tal homem sabia que eu seria prudente. Uma gota, para cada estrela que descubro como nova.

É certamente impossível que tal homem não reconheça o valor de sua mercadoria.

Nômade

Hoje tive um belo sonho
Mas meu coração disse para ir longe do lugar onde está.
Para onde, eu não sei.
Apenas caminho... esperando que o perfume que comprei
Deixe um rastro que não se apague na chuva.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Não é talvez, nem pois.

É o meu único
Amor.

Sabedoria

1º Nunca tenha medo de perguntar absolutamente nada. Assim como os livros são feitos de páginas de conhecimento, o cérebro dos homens também possui suas próprias páginas.

2º O amor-próprio ás vezes se expressa em linguagens estranhas a nós.

3º O solitários são "eu". Aqueles que amam estão além disso.

4º Algumas pessoas, consideradas anti-estéticas, costumam carregar uma rica poesia dentro de si.

5º Jamais chore. Chorar seria dissipar o sofrimento, e o sofrimento é a coroa dos fortes.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Confissão.

Acho que o tempo não apaga
Essa distância
Nem a cria.
É tudo um produto
Da escolha.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

As pessoas se dão por vencidas...

Quando o amor vai embora.
Mas eu não me darei por vencido quando ele for.
Nem quando ele chegar.
Eu já vi pessoas perderem tudo, até mesmo aquilo que lhes era a força motriz impulsionadora de vida. Elas continuaram de pé, porque alguma espécie de espírito as mantinha.
Não quero que pensem que a minha vida é um drama. Pois não é.
Quero que apenas recordem que aquilo que vocês tem de mais precioso, o será muito mais precioso, muito mais maravilhoso quando o perderem.
E principalmente quando essa perda for irreversível.
Uma mulher que não reconhece-o mais como homem.
Um homem que não reconhece-a mais como mulher...
Há nessas pequenas desmemoriações amorosas um sofrimento secreto, mudo e profundo.
Você, que pensa que casará e terá filhos, e envelhecerá, e será feliz ao lado do seu amor... pense duas vezes e reveja todas as tuas atitudes: talvez o destino te pregue uma boa peça, ou talvez você pregue uma peça ao teu próprio sonho...

Jamais duvide de si. Jamais aceite outra coisa que não aquilo pelo qual você luta: o amor.
Quando ele for embora, serás um doente. Seja forte o bastante para superá-lo e ir atrás dele de volta.
Se não puder correr, o espere e seja forte. Se o esperar, pode ser que seja recompensado, seja com a volta desse amor ou com a volta da dignidade.

http://www.fotolog.com.br/cr0wnless/14796823

Esse é o meu tesouro, e talvez nada no mundo possa maculá-lo.
Nem mesmo eu.

Nunca...

O beijo que eu dei foi o mais doce.
Nunca a testa que encostei foi mais macia
Ou o colo mais protetor (mesmo que fosse teu, a quem jamais teria forças físicas para me proteger).
Eu fui o animal ferido que nunca largou as suas armas.
O beijo que eu dei foi o mais doce.
O tempo não lava o rosto da água.
O tempo não apaga o vestígio da noite nos teus olhos.
E que mais esperam-nos os anos? Nada que não seja mais fatal que o teu meio-sorriso
Quando parti.
Nunca terão chorado os cinamomos.
A lágrima jamais rola por fora da película humana. E isto não passa disso: uma membrana frágil e dissimulada.
Se a chuva esconder na argila o cheiro do meu rastro...
Então sonho que jamais poderá me seguir, quando eu finalmente cair.
O beijo que eu dei foi o mais doce.

Fim de semana.

Consegui finalmente dominar minhas emoções. O mais desagradável está feito...
Esse fim de semana foi bom, eu posso dizer. No sábado fui até meu primo, lá almocei, vi o final emocionante de Gungrave (tive que me segurar muito para não desatar no choro), joguei bomberman e vi um pouco de Fate/Stay, além das conversas. Não vi meu pai. No domingo almocei tarde, passei o dia todo lendo A Dama das Camélias (de Dumas Filho) e comendo bolo juntamente com chá (umas 3 ou 4 xícaras de chá!). Terminei Dumas lá por volta das 23h.

Sobre o livro: impressionei-me muito, não apenas com a narrativa, mas com alguns fatos que parecem bater com os da minha vida, com alguns traços do livro que parecem videntes. Eu nunca contei pra vocês, não é? Há duas semanas tive um sonho de rompimento de relações... com a Lola. Em seguida nos dirigíamos para isso. Um dia que fui vê-la, não encontrei minha manta. Achei que tinha perdido-a. Em Dumas Filho, Marguerite passa o inverno sozinha, distante do seu grande amor, e morre quando mal se aproxima a primavera...

Não vou discorrer sobre esses detalhes, mas eles parecem vir carregados de um simbolismo especial. Não sei se foi em minhas ficções com a realidade que os percebi e os anelei aos meus dramas, mas... Se alguma coisa acima de mim existe, isso poderia muito bem ser a sutil linguagem que ele usa para falar comigo.

De qualquer forma, ando melhor, sim, obrigado. O domínio das minhas emoções veio com uma espécie de auto-suficiência nos meus sentimentos. Lembrando das coisas boas que passei, da minha felicidade anterior, pude manter meus sentimentos e desfrutar deles... Me sinto mais forte e mais autônomo, e isso é bom. Além do que, há coisas que andei pensando, e das quais não ousaria contar aqui no blog... Há coisas que precisam ser revistas, não apenas no meu cérebro, mas no meu coração.

Espero que essa semana seja produtiva em termos acadêmicos. Quero dar uma boa aula sobre mídia (ainda não a dei) e instigar meus colegas. Quero que aqueles vagabundos da minha aula me respondam o brainstorm, senão eu terei de inventá-los. Quero me divertir, porque se não o fizer, terão sobrado apenas aborrecimentos e trabalho.

É tudo.

Espero acordar bem amanhã.

Que tudo isto...

Não seja um sonho.
Pois se for, terás passado como um.
Pois se for, eu terei sido outro e não este.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Ela me fez um pedido misterioso...

Que pedido misterioso...
Não quero alimentar ficções. Eu disse a ela. Ela permaneceu impassível.
Que pedido misterioso...
O de, talvez, me preparar para o invitável, como alguém que marcha ao cadafalso?
Que pedido misterioso...
O de, talvez, vencer a mim próprio, meu egoísmo? O de vencer o que não consigo suportar?
Que pedido misterioso...
O de, talvez, fingir que as coisas estão bem, para então calmamente te deixar?
Que pedido misterioso...
Se eu fosse eu, o que escolheria interpretar?
Se eu fosse eu, o que eu escolheria ler?
Se eu fosse eu... o que eu escolheria amar?

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Limite.

- Quer dizer que... este é o meu limite?
- Talvez
- E se não for?
- Então você estipula um outro
- Gosta de ter limites?
- É necessário... O próprio ilimitado tem um limite.
- Mesmo? E qual?
- Nós, humanos, por exemplo...
- Isso não faz sentido!
- É como aquele enigma chinês: se uma árvore caí dentro de uma floresta, e não há ninguém para ouví-la, ela produz som?
- Sempre que alcanço um novo limite, sinto necessidade de ir além dele...
- Isso é uma infelicidade...
- E porquê!? Sempre pensei que fosse sinal de força, de espírito forte... Não ter limites, limites possíveis...
- Significa que não está satisfeito com o caminho que traçou, os limites aos quais chegou. Tua sede pelo infinito se edifica sob uma contínua insatisfação...
- Você... você acha mesmo isso?
- Não seria eu, agora mesmo, um novo limite a ser superado? Não seriam as minhas palavras, de condenação a tua fome pela vida, um pequeno teste que o fado te traz? Se cais derrotado, diante de verdades que muito bem poderiam não sê-la, então chegastes ao teu limite?
- Estou derrotado quando encontro meu limite?
- Aí é que está.
- E se desejo, de coração, transpô-lo?
- Então aí não será mais tu a transpô-lo, mas outro.
- E qual é o nome desse outro?
- Você saberá.

Será que...

........ é isso?

Se sei amar...

Talvez saiba não amar.
Saiba ser aquilo que você está precisando que eu seja, babe...
Saiba ser menos eu e mais tu.
Será que ser tu é igual a não ser mais eu?
Se eu for eu, serei esse mesmo idiota... que está quase caindo em um poço.
Talvez você precise de um amigo...
Talvez você precise de uma coisa diferente...
Talvez precise que eu seja menos eu e mais para você.
Isso significa que tenho que me enfrentar.
Que tenho que vencer o que nunca venci.
O que sempre tive orgulho de nunca vencer.
Engraçado, né?
Será que eu consigo...?

quarta-feira, 3 de junho de 2009

A Noiva do Vento

O inverno estava no coração dela. No tórax, também. Toda a vez que tentava a respiração dentro do sufoco, dentro daquele pulmão de lágrima viva, de lágrima morta. Seus cabelos eram afeitos àquela estação que, antes de tudo, era uma estação da própria alma. Seus cabelos... seus cabelos eram de prata e de ouro, não sendo um e outro, apenas uma exteriorização... de si? Dos outros? Da sede por sumir? Suma, Diamond... Corra... O inverno se aproxima do teu coração, e seria realmente melhor mergulhar nesta redoma, esta pequena e aparentemente frágil redoma de diamante.

Andava... O néon, da “Saint-Fuck Chapel”, amarelado, batia nas roupas dela... Neve por todos os lados, e nada.

Nada que não isto, não é mesmo? Um vazio de ter sido traída na infância dos seus sentimentos, ignorada quando tudo o que desejava era ao menos ser ouvida. Era nisso que se detinha, que pensava. Um a um assassinava seus sentimentos. Aos poucos, com o passar dos anos, teve a impressão de ser perseguida por uma sombra: seu Assassino a procurava, ele mesmo, procurava sua alma como uma aranha.

No dia de ontem estaria fugindo dos passos “daquele homem”, aquele homem alto, truculento, grosso, rude, incompreensível... Aquele imaturo. Fugia, e esmagava sua capacidade de sentir fúria, esmagava sua capacidade de se importar se ele a deixaria furiosa. Ele seria seu Assassino? Seria ele um castigo por ter sido tão desumana, tão ressentida ou tão benevolente? O que, por um tempo, lhe parecia amor, aos poucos foi se tornando sombra...

Agora, hoje em particular, ela se punha no lugar onde se conheceram (triste coincidência!), e que era uma das mais horripilantes vistas da Baía de Tóquio: a neve ocupava tudo com um branco que era morte e não vida. Seus cabelos, agora que suas mãos estavam bem postas no parapeito de aço, agora que seus olhos desejavam transfigurar-se em pássaro, agora que... agora que estava só; seus cabelos balançavam como uma promessa solta no vento. Por quê? Porque insistia em procurá-la? Porque insistia em machucar seu coração? Essas perguntas ela tentava afastar, como a uma criatura selvagem e demente.

“Por... quê? Agora que consigo... me isolar, me proteger... Por que vem com esse ar prepotente, mesquinho, egoísta, esfarelar minhas certezas?”

Um arrepio percorreu seu corpo, como a confluência gelada de um rio que deságua em todo o seu interior... era um rio negro que se estendia, com as formas de um homem, sobre seus pés. Sobressaltou-se, e virou, decidida a mandá-lo embora: nada.

O vento carregava as últimas folhas secas... era inverno em Tóquio, a cidade adormecida, a cidade grande, a cidade solitária. Também sentia o tráfego de desejos ruins em suas veias, em seus pensamentos. E a confusão... e as buzinas... e... o cansaço. Sim, o cansaço. Estava cansada de lutar por algo que não tinha, que talvez nunca tenha tido, e nem nunca teria. Estava cansada de um cansaço... que aflinge, que drena, que joga na esquina da vontade de morrer, uma vontade que antecede a ilusão da força, a vontade de ser livre confundida com uma auto-destruição do coração.

Mas onde, precisamente, se situava aquele “voltar-se para trás”? Aquele desconforto...

-“Estou mesmo sozinha.” – voltando-se para a baía. –“Estou sozinha como essas águas, essas lindas águas que permanecerão as mesmas, ainda que o inverno as cubra com o branco, ainda que a primavera instale o sol em suas ondas, ainda que o verão traga muitas flores e chuva, ainda que o outono torne a deixar essas águas cinzas e admiráveis pela sua nobreza e imutabilidade. Estou sozinha, mas não sou água. Estou sozinha, e constantemente amputada por estas estações, que me transmutam, que me insatisfazem. Estou sozinha e fui mudada, mais que pelas estações, mas por você... Que infelizmente foi cruel, que infelizmente não viu, não ouviu, não sentiu, não cheirou o meu perfume quando eu mais precisei. Eu estava machucada, eu estava perdida, eu queria o teu colo, o teu colo quente e macio, a tua proteção vigilante, o teu amor caridoso, as tuas palavras que são ditas ao ouvido, como um segredo nosso e só nosso. Eu queria... e depois de tudo não tive. É hora de partir...? Ás vezes me parece que sim... ás vezes me parece que é assim que o vento é e deseja ser: ele parte quando menos espera, e por isso é belo, e por isso é livre, e por isso não sofre, o mesmo vento que parece desejar partir das correntezas do meu coração...”

-“O vento, sim, é livre... “

Quando ouviu sua voz, um estremecimento percorria a nuca daquela menina. Quando ouviu sua voz, pensou que fosse apenas um truque do vento... e na verdade era: um truque de sua mente.

-“Um truque do vento... para me chamar até ele, a tentar ser como ele?” – ela pôs um dos pés sobre uma barra de aço do parapeito, como se fosse pegar o impulso de um salto. –“Um truque do vento, mas com a tua voz... Você quis ser como o vento, e fugir entre meus dedos, do meu coração? Esse é o teu grande segredo? Essa é a tua grande natureza? Se for... deixo que ele saia de mim, que ele percorra as águas da baía e suma. Porque não vai fazer diferença. Não vai...”

Não vai fazer diferença se ele está ou não. Não vai fazer diferença se a neve é branca ou é vermelha; se o cigarro tem filtro ou não; se a vida vai continuar uma merda ou não, porque o grande assombro era este: não conseguir ser a mesma depois daquilo tudo.

-“Uma bela vista, não?”

-“.......... Há quanto tempo está me seguindo?”

-“Desde que... eu comprei isto.” – mostra um cachorro-quente quase todo devorado, a não ser por um pedacinho. –“Quer?”

-“Não, obrigada.”

-“Está bom.”

-“Deve estar. Aliás, era você agora há...”

Ele permaneceu a fitando. Ela sequer olhava para ele. Mas a cara de King era a de estranhamento: não sabia do que ela falava.

-“Esqueça.”

-“Por que?”

-“Porque esquecer é fácil.”

-“E lembrar é difícil?”

-“Arre. Estou dizendo outra coisa...”

-“E eu lembrei que hoje é o seu aniversário.”

-“É mesmo? Pois pra mim é daqui alguns meses.”

-“Boba: hoje, dia 20 de janeiro... foi quando você me deu aquele murro na cara, lembra?”

Sim, é claro que eu lembro, teria dito ela... Mas que coisa. Faziam... dois anos. Dois exatos anos em que eles haviam se conhecido e ela o teria tomado por um cafetão.

-“Eu não... lembrava disso.”

-“O vento não lembra. A água não lembra, e veja só: permanecem os mesmos.”

-“Do que está falando?”

Ele se aproximou dela e apontou, colocando o pé sobre a mesma barra de aço do parapeito que ela.

-“Eles são tão superiores a nós, né? Eles não sentem medo, não sentem frio ou calor, não sentem saudade, não sentem raiva, não sentem carinho (não transam): são o que são. O vento sempre será apenas o vento, e a água será apenas a água. Não há poesia para eles, não há nada que os complete, porque quando os sentimos notamos que estão completos, que estão certos do seu destino.”

-“...”

-“Eles não podem amar. Eles não podem cheirar. Eles não podem sentir. Eles são...”

-“É o que eu queria agora! Não sentir nada! Isso, essa não-sensação, e essa sensação também, que vem dela, essa sensação de inverno, de paralisia, de sem-gosto, de...”

Quando deu por si, seus lábios estavam colados aos dele, e a sua raiva foi tanta que não demorou em dar-lhe o segundo murro.

-“O que está fazendo!?”

-“Você nunca será como o vento. Meu dentista que o dirá...”

-“Argh. Deixe-me ir... Aqui é... perda de...”

-“Tempo? O vento não perde tempo. Nós que perdemos o tempo quando o vemos passar.”

-“...!”

A mão dele estava sobre a mão dela. E era tão quente...

Foi de-repente... foi tão de-repente...

Que ele a abraçou, forte, tão forte... Que a respiração de um parecia transferir-se para o outro. Ela... ela queria sair, ela queria ficar. Ela... não estava confusa. Não sentia nada. Nem a lágrima que saía furtiva de seu olho.

-“Você é como o vento... Nunca pára no mesmo lugar.” – disse ela.

-“O vento parou quando se deu conta de que não era vento. De que era algo plenamente... isso.”

-“Isso ...o quê?....”

-“...Seu.”

Lisboa Revisitada

Nada me prende a nada.
Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja -
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

E eu, que não sonho. E eu... que não conheço o sono
Que talvez esteja sonhando
E dormindo agora mesmo.
E eu, cuja intangencialidade do sonho
Se perde na dureza do infinito.
Esse infinito tão finito. Esse sonho tão realidade.
Ando, as mãos nos bolsos,
Metafisicamente falando: um sonâmbulo.

Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.
Não há na travessa achada o número da porta que me deram.

E por isso eu sigo andando
Nada me prendendo a nada, que seja terreno ou celeste
Porque este céu, que parece céu, não é mais que a outra face do asfalto em que tropeço.

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta - até essa vida...

Deveria abandonar a batalha, não achas? Mas até que ponto dormir não é acordar...
Até que ponto não somos um produto do que sonhamos?
Falsidade para fora e dentro de mim. Arrogância, prepotência, submissão...
Até essa vida... seria grande demais, esférica demais.





Sobre o poema:

Foi uma tentativa de diálogo com Álvaro de Campos. Fiz agora mesmo, em alguns minutos. Talvez tenha saído ainda muito 'cuidadoso', mas eu prometo que me despojarei das palavras.

Não vou ficar citando cada estrofe como a de Álvaro: vocês, que conhecem Lisboa Revisited, não terão dificuldades em percebê-las.

Segundo dia...

O segundo dia veio mais silencioso. Nem o percebi. Acordei quieto, tomei meu banho quieto, saí quieto. Tudo quieto. Eu nunca fui mais quieto do que isso.

Algumas coisas... que andei vendo... talvez sejam o preço a pagar. Nada precisa ser da sua conta, babe. Nem eu. Ás vezes desejaria ser esmagado, ser xingado, ser jogado fora para contrair um ressentimento, tão grande, que fosse suficientemente grande para apagar o que eu sinto. Porque não direciona esse golpe contra mim? É mais prazeiroso assim?

Meu estômago está revirado. E eu já nem sei como consigo dormir.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Se escrevo sobre o mar, não é mar: é maremoto.
Você entende sobre isso, não é? Essa expectativa furiosa, misteriosa...
As massas de água nos ensinam que somos feitos para a terra, e não para essa profundidade do absurdo. Você é bicho da terra, não da fúria. Você é tranqüilo, não indômito. O mar me ensina isso, toda a vez que o encontro, toda a vez que o sinto. Se subisse os degraus do céu, seria apenas um minuto de... solidão.

Meu primeiro dia...

Aconteceu. Eu acho que errei demais, errei demais mesmo... E talvez agora sequer tenha volta. Nunca tem. Na verdade, todas as coisas que você faz elas permanecem, de alguma forma, seja num sonho ou em uma lembrança. A sensação de fracasso não pode ser maior que a dor: a dor da irreversibilidade. Mas eu acho que eu a mereço, e não a pessoa a quem fiz tais coisas. Entretanto, estou angustiado. Durante a noite o sono vem dificilmente. Fico no computador, esperando para falar um pouco e descobrir alguma coisa: se nunca mais nos veremos ou se ela ainda sente algo por mim que pode se tornar grande. Essa dúvida... nunca a tive antes. Em relação a ela, ao menos. Sempre soube amá-la. Mas talvez... talvez eu tenha me descuidado. Talvez eu tenha ficado desleixado por dentro, e isso tenha se refletido fora de mim...

Ontem mesmo percebi isso. Desleixo. Descuido. Meus cabelos cresceram, minha barba também. Ás vezes ponho qualquer droga de roupa, apenas para não passar frio. Nem ligava pra barba, pro meu quarto, pras minhas propostas de emprego para mim mesmo, para minhas idéias, para nada. Meus estudos: pff... fazia nas coxas. Eu percebi que não gostei de mim o suficiente. Percebi que não cuidei de mim o suficiente. E se eu não cuidei de mim, se eu não me importei comigo, como posso dar, como posso me importar com outra pessoa? Se eu não tive a percepção para ver antes que a minha própria situação é crítica, óbvio que eu não teria percepção o suficiente para cuidar de ti, querida. Eu não sei se essa é a verdade. Talvez seja uma verdade, uma razão. Talvez existam muitas razões e verdades que derrubem esta.

Mas eu resolvi tentar...
Refleti, refleti mas ainda não cheguei a uma fórmula que possa driblar a minha falta de atenção, a minha falta de cuidado e discernimento; Tudo o que percebi é que o caos das minhas coisas era parecido com o caos que vive dentro de mim. Hoje acordei cedo, sabe... 15 pras 8h, e fui fazer um bolo. A cozinha estava arrumada, e ninguém havia acordado (ou tinham saído). fiz um belo bolo de chocolate, com muita paciência e cuidado. Fiz a calda e deixei esfriando. Fiz a barba também, tirei a sobrancelha, me lavei todo, pus um creme no cabelo para deixá-lo mais macio, dobrei minhas roupas, ajeitei meu quarto o que eu pude (embora ainda falte o armário) e me perfumei. Onde estava meu amor próprio? A coisa que sempre achei mais importante...
A verdade é que se tu não tem amor próprio, não pode amar. Mesmo que tenha sentimentos! Não pode... não conseguiria dar o que não dá nem pra si.
Arrisco, é verdade, com os olhos contra o escuro. Penso, agora, que mesmo que dê errado eu terei tirado alguma lição. Sofrerei, sofrerei muito, mas vou precisar suportar isso como homem.

Quando olhei meu guarda-roupa pensei: "pena não termos alguma máquina que dobre as roupas automaticamente. Não tenho paciência para dobrar isso...". Foi então que eu me dei conta: eu não tenho paciência. Essa paciência de zelar por uma coisa, de mantê-la limpa, ordenada, organizada, direita, bonita... a paciência que vem com o gosto, o bom gosto pelas coisas. Essa paciência que, naturalmente, te tira um tempo do teu dia e te põe a focar uma atenção que você gostaria de ter posto no video-game ou em outra coisa qualquer... essa paciência de fazer aquela coisa e esperar a perfeição dela. Como é bonito! Como é simples!... Hoje mesmo, quando eu voltar para a minha casa, arrumarei peça por peça de roupa e a dobrarei em meu guarda-roupa. Lavarei uma camisa e me arrumarei para amanhã ir marcar uma entrevista.

Pretendo desenvolver esse diário com muita paciência e postá-lo, sobre esses dias em que ficarei sem o meu amor. Será que posso mantê-lo? Será que posso mantê-lo como aos meus sentimentos? Apesar de ter me distraído, apesar de ter pensado, de ter sido otimista em relação a coisas as quais eu não deveria ser... apesar de tudo estou disfarçando uma tristeza. Será que a faço bem? Se as pessoas lerem o meu diário, saberão que não. Sorte que quase ninguém me visita aqui, e sorte que quase ninguém, quando visita, lê tudo o que escrevo... Não é por orgulho, não. É porque, mesmo que eu grite o que eu sinto, nada vai mudar o que já está feito.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Umar

Imagine um céu de prata fria
Seja por sonho ou por realidade... Uma prata
Que foi esquecida dentro do congelador.
E que por isso, repleta de estalactites,
Joga pela mão do inverno
Agulhas de gelo enxugado.
Imagine o céu, olhando para cima, este mesmo céu
Que não é azul ou preto
Um céu idoso, cujas mãos parecem sangrar vapores de aço líquido.
Um céu que sobe.
Eu estou para cima, ás vezes achando que a gravidade
Me joga para cima.
Você sentiria, se fechasse os olhos, este céu?
Provavelmente
Seu estômago sentiria o abalo desse novo centro gravitacional
O estalar da madeira, a bruma salgada e branca, repleta de faróis de luz quebrada
E abaixo o negro, repleto desse marulho, dessa calmaria indecisa da espuma.
Um mar de mármore
Eu estou líquido por baixo do sólido
E meu estômago segue o tambor ritual dessa senda.
Não sei porque estou aqui.
Não sei mesmo. Eu fecho os olhos, e apenas sinto, na escuridão da pálpebra
O mesmo mar de ébano, a mesma fuligem sombria do enxofre, jogando no infinito do céu
O seu toque gélido.
É inverno.
Os ventos polares trazem nuvens e neve líquida
E a mudez dos trópicos, agora caduca, deixa de ser oca
Se fecho os olhos, a madeira estala
Se não fecho, percebo que estou em trânsito
Com coisas pouco semelhantes a mim.
O mar de cobre, escondendo os tesouros da morte em seu olho vítreo,
e, com olhos fechados, o canto dos pássaros
O grasnar dos ventos
Penas que voam, não de cisnes, mas desses abutres marítimos
Atravessados pelo rugido mole da maré.
E o esôfago, estreito por uma mão
Uma mão que agarra meu pescoço...
Novamente caio para cima, e a onda prateada do céu
Baixando, ferida pelos ventos anciões.
Se olho para baixo, o sal explode ou então desliza, como um leite de água viva...
Acima, o céu gelatinoso... anêmonas que morrem e são injetadas com tempestade pura.
E se baixo os olhos, uma vez mais! Nada... apenas o estalar da madeira.
Para cima eu novamente caio...
Penso nos rios que recebem tão tumultuosas águas.
Penso em todos os rios, em todas as pequenas veias que recobrem a terra
E a abastecem.
Minha língua sente o gosto duro dessa terra
E se abrires os olhos, sentirás a terra
Em tua vértebra
Em tua espinha
Em teus movimentos ósseos, quando cais pra cima
E mergulha na piscina de silício.
Meu cérebro... atravessado pelos cânticos
Meu cérebro é uma página. Uma única página.
Não sonho. Não sonho... talvez estivesse dormindo antes de acordar
E perceber
Meu esôfago, minhas mãos, meus pés, meus cabelos
Arrepiados pelos ventos anciões
Se quebrando, no tumulto grávido de ecos
Na espuma de mármore que desmancha a confusão das coisas que disse.
E se olhares bem, verás a chuva
na tua testa
A luz na tua boca
O teu coração, aberto diante de um espelho...
Batendo compulsivamente.
Quente e sólido.
Mas a chuva... esta apaga todos os rastros do teu grito.
O grito mais humano do mar.
O grito menos humano que pensaste.
E tudo torna a desaguar dentro de mim...

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Não serei aquele...

Que irá para o país dos justos.
Agora, querida, que o remorso parece menos evidente
Que a violência torce menos os meus sentidos
Agora que estou, pouco a pouco, sendo despido da consciência
Agora quero que me diga, bem na cara, que sou um assassino.
Vamos, diga... Porque se não disser, crescerão duas asas
De serafim branco em minhas costas.
Essa incapacidade de me tornar uma e outra coisa me mutila.
Se sou um demônio, logo me descubro um anjo.
Mas é apenas minha humanidade.
Não é?
Se fosse, eu seria duplo. Mas sou triplo.
De uma triplicidade de homem fraco, de homem jogado.
Estou na sombra, sou o terceiro olho que tudo vê e que nada faz.
E se a iluminação, e a fertilidade da minha morna sabedoria estiver bem fecundada,
Então que eu não me torne um ou outro, mas apenas esse resto mutilado de mim.

O Jaguar

Para que ele chegue, é preciso que isso passe.
Quando vier, a sua sombra sobre o meu coração,
Saberei.
Seus olhos paralisam a ilusão da Ciméria.
O mundo está infinito em seus pêlos contra o sol.
E o sangue, escorrendo no pescoço de Apólo, transformou seus lábios
Em rubi.

Nietzsche

... Não morreu.
Mas morrerá, assim que eu matá-lo.
Renego os teus conselhos, pai enfurecido! Teu bigode me enoja.
A tua falsa força recende ao ressentimento.
Quem machucou o teu coração assim a ponto que te tornasses forte?
Quem deu tamanho faro ao teu coração para sentires assim a fraqueza?
No teu submundo não há uma flor assim, delicada e podre, que cresceu de duas sementes?
Beba com o teu Dionísio. Deite no colo de Apólo. Pois quando eu chegar,
E eu vou chegar,
Arrancarei e exibirei o verdadeiro apodrecimento dos seus corações.
E a loucura, como uma bandeirola confusa de festim, deixarei tremer
Aos teus imprompérios.

E se fingíssemos...

Que eu não sei me comunicar?
Você recorda, eu sei, da minha língua única...
Toda metaforizada em coisas que eu nem lembro ser.
Eu costumava me orgulhar por fugir assim do mundo.
Onde está o mundo? Embaixo dos meus pés? Não sou tão grande
Quanto essas formigas, que morrem embaixo dos meus pés.
Eu sempre tive aquela proficiência em ser meu próprio juíz, mas não um juíz justo:
eu sou o carrasco. Gosto da lâmina tesa no meu pescoço, prestes a machucá-lo.
Se sou tão amargo, se sou tão defensor do ódio-próprio, onde está a justiça?
Eu me achava um herói.
Um nobre.
Não sei de justiça.
Apenas sei inverter a ordem das palavras.
Encontraria rubis na tua boca, se parasse de me sentenciar.
Mas não pára.
Não precisa.
Sei que sou idiota.

Minha poesia...

Não é poesia. É o seco da garganta.
É a auto-auto-ajuda. Uma realmente 'auto' -ajuda.
Faço isso como se liberasse a toxina.
Comi muitas folhas de beladona, uma vez, tentando perder a noção de responsabilidade.
Hoje acordo com ressaca.

Não me venha falar de amor...

Pois sou um monstro. Jamais entenderia.
Eu sou aquele animal escondido na mata americana, espreitando o animal que fugiu do seu bando.
Ao menos é assim que gostaria de me ver.
Tantas vezes apunhalei, mas com medo...
Pink Floyd estava certo: eu sou um cão. Todos são assassinos.
O meu me procura, e eu farejo a sua fatalidade, os seus passos de príncipe negro.
Sua adaga chama pelo meu nome... eu te matei.
Estou fissurado. Será que meu inimigo mora aqui dentro? Se eu fosse mulher, estaria dando luz à morte. Essa imagem seria cruel, não acha?

Explico-me...

Pelos meus sofismas.
Eu manipulo. Ou você manipula.
Tomemos por você.
Você manipula a realidade...
Você sente dor.
Estamos aqui, mas talvez não estejamos.
A vida é francamente uma ilusão, mas de ordem lógica. Você pode estar falando
Bobagens falaciosas. Eu não ligo. Você vê como quiser ver, mas eu sei que sente
A facada que te dou pelas costas.
Eu sou um bandido, já disse isso um milhão de vezes.
Mas você ainda insiste em me curar.
O inferno, eu já falei sobre ele? É o subterrâneo das minhas ações inexplicáveis:
Tentei te falar de Deus e o Diabo, mas está tudo aqui, na garganta. Abra-a para ver.

Poesia

A poesia não é uma glorificação do sofrimento.
É uma brincadeira.
Eu estou brincando de sofrer.
O verso nasce da angústia em seu inverso;
Talvez eu esteja brincando de fingir que não é comigo.
Falo dessas coisas todas...
Não é comigo, não.
É contigo. É sobre ti.
Eu não sei de nada. Faço jornal. Conto os fatos.
A dor é assim: um esfacelamento da vontade.

Eu não sou duplo.

Eu sou triplo.
Fissurado, eu sou a fissura.
Não sou as duas metades, sou o conflito,
Precisamente as lacunas,
O vazio da urna que um dia foi essa 'coisa toda'.
Eu me defino pelo que não sou.
Me multiplico.
E é a ausência que me apresenta... (das coisas que não fui)
E é nessa ausência, na que me ausento, que me percebo
E me especto
Não há luta, apenas uma confusão de desejos.
Não nasci para ser forte.

Na verdade...

...A punição é um antídoto contra a nossa pequena maldade interior.
Eu a amputei, com um sorriso cirúrgico nos lábios.
Um sorriso búdico
Ignorante.
Quantas vezes estive cego este mês? Andava nas trevas
Ou então ofuscado pela minha própria luz.
Eu era o Sol.
E talvez continue sendo o Sol. Este mesmo que brilha, que parece quente...
Mas está gelado em seu núcleo, gelado pelo pavor de uma noite
Silenciada pelo teu choro.
Eu costumava ser o Sol.
Hoje sou apenas essa máscara, essa porcelana fria do meu medo.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Meu post será simples.

Hoje estive pensando: porque nós, privilegiados, quando descobrimos uma coisa fantástica (um poema, um romance, qualquer coisa fantástica e de cunho cultural) passamos a repudiá-la quando esta se torna objeto de afeição pelas massas? Nós, que ousamos nos considerar artistas, isto é, pertencentes a um círculo muito restrito e privilegiado, porque nós nos sentimos desconfortáveis?
Isso me parece o amor-próprio, a vaidade, a presunção, a ingenuidade, a imaturidade falando mais alto que aquilo que nos (supostamente) presenteou com as suas reflexões e com sua beleza. Pois, se somos tão gratos e admirados daquele poema magnífico, porque desejaríamos privá-lo do contato com as outras pessoas, numerosas e não tão privilegiadas? Se o poema nos enriquece, porque desejaríamos o contrário do enriquecimento nas outras pessoas? Elas são inferiores? Por quê?
Não me levem a mal. Ou melhor: me levem. Sim. Me levem muito a mal, porque eu quero soar desconfortável onde vocês não deveriam achar desconfortável. Minha visão pode parecer facediana, antielitista, mas e daí? Acho que vocês precisam refletir...

Se partimos do pressuposto de que a arte é a nossa cultura, é a nossa tradição, é o nosso passado cultural; de que a arte enriquece, de que a arte (a alta arte) exige estudo, compreensão, sensibilidade; se partimos do pressuposto de que a arte, em sua mínima recepeção, é altamente benéfica, e em sua máxima puramente beneficiosa, eu pergunto porque nos é tão caro essa insígnia distintiva, essa restrição. Porque ela perderia seu valor ante a nós se elas fossem amplamente divulgadas e adoradas. Não conheço nenhum autor, nenhum poeta, por maior que seja, que não gostaria de ser mundialmente reconhecido, seja pela massa ou pela crítica. O alto poeta, que reconhece seu valor, não ficaria maravilhado se seus incompreensíveis versos fossem idolatrados? Não lhe pareceria óbvio o sucesso de sua auto-expressão? Ou não pareceriam aos sociólogos, aos pensadores, óbvio o crescimento nos índices de alfabetização, educação, instrução (ou por outro viés, uma baixa no preço dos livros, uma maior derrocada do conhecimento e preciosismo da arte). Se partirmos desses pressupostos, compreenderemos em nós mesmos algo que tentamos negar: nossa vaidade. E não se trata da vaidade do homem confiante, que se cuida, se preza, sabe seu valor e o cultiva. Não. Para mim é a vaidade do homem mesquinho, que querendo disfarçar sua pequenez, ou deixando que o seu amor próprio se eleve e obscureça o amor à arte, perceba com um olhar mal todo aquele que pode vir a degradar seu status quo de "homem diferenciado". É isso que eu percebi em mim: esses dias estava lamentando que coisas que eu gosto, livros e etc, estejam se popularizando. Mas acho que minha cabeça mudou. Hoje mesmo sonhei com uma utopia. Vocês querem ouvir sobre ela?

Dante abriria as comportas dessa Utopia. Partindo de Dante e do Inferno, as pessoas cada vez mais iriam buscar os textos clássicos e haveria um maior interesse pelo passado literário do ocidente. Chegariam à Virgílio, depois iriam para Homero. Haveriam impressões em versos e as pessoas talvez sentissem curiosidade por textos menos desintegrados. Isso seria um aumento no índice de alfabetização, onde os livros chamariam as pessoas pelo mesmo motivo que eu abomino: status, imaturidade, vontade de ostentar. Os livros ganhariam um certo destaque, porque apesar dos filmes cult serem populares, todos sabemos que a linguagem do livro força mais o leitor que a linguagem do cinema. A imagem produz um efeito mais imediato, e muitas possibilidades de reflexões acabam se perdendo na condensação das obras filmográficas (não desconsidero a importância do cinema. O cinema tem sua própria linguagem, suas próprias técnicas e estéticas, e filmes altamente reflexivos).
Mas sim, os motivos que abomino seriam esses: ostensividade. As pessoas veriam o livro como algo antigo, algo de distintivo, e ele realmente poderia ser visto assim. As pessoas estão cada vez mais se interessando pelo passado, por idéias antigas, por coisas que delineiam, aos olhos das outras, mais berrantemente uma personalidade. Se a mídia se aproveitasse disso, poderia fazer com que as pessoas realmente pensassem que o livro é uma espécie de moda, uma moda do intelectualismo, do homem que se informa e que medita sobre coisas, que vai aos museus, que lê artigos sobre o impressionismo francês.
Todavia essa imaturidade, com o tempo, poderia acabar em duas coisas: ou, por culpa da mesma mídia, o livro cai de novo no obscurismo (o livro da "alta literatura") e volta a ser coisa do passado, ou as pessoas acabam superando a imaturidade e acabem descobrindo (pelas próprias leituras) que aquele prazer que tiveram é algo só delas e tão delas que não poderia ser ostentado sem que isso perdesse seu significado.

Com um aumento no índice de leitores teríamos mais autores. Concordam? Teríamos mais críticos, mais artistas, mais pessoas para fazermos diálogos. Mais pessoas, mais leitores, mais autores são igual a um sistema literário (como Antônio Cândido o pensou) mais forte, melhor definido e mais heterogêneo ainda. Teríamos muitas coisas, teríamos maiores importações de livros que nem sonhamos existir. Teríamos mais arte, mais poesia, e talvez a literatura se revitalizasse justamente pelo meio mais sedutor e mais nojento: a vaidade. Deveríamos deixar que as pessoas tomem nossos queridos clássicos para si, que falem deles, que viagem sobre eles, que leiam, que ostentem... porque é essa a infância dos leitores, é essa a infância dos poetas, dos escritores, dos artistas. Precisamos respeitá-las e estimular nessas pessoas a evolução, precisamos esquecer as diferenças que nós, privilegiados, TÃO ARBITRARIAMENTE impomos. São diferenças basicamente temporais e financeiras. A massa da população brasileira nasce sem boa instrução. Nós, filhinhos de papais, nascemos para sermos nobres entre as pessoas, para termos boas condições de vida e bom conhecimento da nossa cultura. Nascemos quase que para sermos os guardiões da cultura e da boa educação, da boa instrução. E o que fazemos? Vejo muito dos nossos jogar o dinheiro fora com drogas, com porcarias, com leviandades. Queria que os números de autores se multiplicassem, e os de leitores também. Os artistas seriam em maior número. Não haveria elitismo, mas como recompensa teríamos maior trânsito, mais idéias, evoluções, experiências, diálogos...

O que me dizem vocês?
IV

Despedaçado o lamento pinga em lábios de bronze
- Afunda em seus olhos a gravidade lunar.
O lombo, submerso na mudez branca dos tecidos,
Vibra contra a profunda lentidão das águas.
E, por uma onda de aço frio que desata do norte
Juncos de mármore esfacelam a espuma cristalina.

V

A aurora acorda no louro dos seus cabelos.
Negras pálpebras
Encerram uma visão tumultuosa de arrecifes.
Alguns diriam que é um lírio sobre o espelho.

Nos montes
A visão de um astro obsucrecido gela a floresta castanha
Discreto passeia o seu sono sobre folhas de safira
- Pólen lunar a trás para os braços do homem.

VI

Despedaçado lamento sibila em lábios de bronze
Na órbita da lua afunda seu coração.
E, seu corpo, aprofundado na visão branca de tecidos
Que flutuam na profundidade trêmula dos ventos.




Para quem conhece Trakl, não há mistérios. Desde que uma pessoa me conduziu até ele, e até apontou semelhanças (pra mim elas existem porque tanto ele quanto eu fomos leitores de Rimbaud), fiquei marcado por uma poesia, por um estilo, que é dele, e apenas dele, e do qual acabei recebendo influências.


Acredito que receber influências, dialogar com os autores, copiar, superar, recriar... isso tudo faz parte do processo do sistema literário. Ninguém cria nada, apenas recria. O novo é uma utopia, e diriam alguns até que se trata de uma histeria tipicamente romântica.


Não procuro copiar Trakl, mas estou tentando recriá-lo com o meu estilo. Por enquanto não estou fazendo nada muito diferente. A visão de uma mulher adormecida é ainda muito genérica e despersonalizada, e essa despersonalização e esse "conhecimento" das formas femininas ainda é muito típico dele.


O que procurei realizar foi uma construção bem pensada e mostrar como tento fazer isso. As mudanças nas estrofes, como acontecidas nos versos de um post anterior, são mudanças nas palavras, nas ordens delas. São escolhas que faço procurando criar um efeito. Esses efeitos são previsões que faço na reação cognoscitiva (se posso chegar ao absurdo da presunção de dizer isso) do leitor. Sua inteligência irá tornar as coisas que escrevi coisas imaginadas e pseudo-sensitíveis (assim espero). Sua aprovação estética virá daí.


Nesse caso quis criar uma situação que venho criando sempre: o sono. Não sei qual a verdadeira razão dessa fixação, mas parece que venho procurando um estado de crescente imobilidade na poesia. Uma imobilidade que é adquirida apenas pela técnica e pelo pensamento. Tento misturar a reflexão cerebral e os testes que faço com alguma intuição e improviso. Não gosto de ser absolutamente cerebral, mas a paciência que esse tipo de coisa me cobra é quase um caminho para o budismo (hiperbolicamente falando). Essa espécie de poemas, que tenta condensar ao máximo as idéias, e buscar essa suavidade e essa plasticidade, foram muito lateralmente apreendidas por mim por meio dos orientais. Dos japoneses li alguns poucos versos pequenos, mas que não chegavam a ser haikais. Dos chineses li traduções de poemas que foram cantados em música erudita (ou moderna, se o caso for Mahler, acredito).


O sono se transforma em muitas coisas. Em poemas anteriores, eu procurava recriar, com auxílio de uma "escrita automática regulada e decantada", uma atmosfera de lentidão e imobilidade pelo poder de sugestão que as imagens causavam em mim (sou uma cobaia). Dessa vez estou reduzindo as imagens e dando menos movimento, menos corporiedade. A imagem é uma só.


Na primeira série de três estrofes tive uma idéia de improviso: e se eu tentar criar uma espécie de contraste? Talvez ficasse interessante se eu colocar, em uma mesma estrofe, a imobilidade do corpo (o sono) e, ao mesmo tempo, vibrações dos tecidos que o envolvem, tomados pela ação do vento. Eu tentei fazer isso, procurando verbos que melhor representassem em sua construção material esses estados. Nessas primeiras tentativas é possível notar que eu fui reduzindo o número de palavras, até que na última estrofe a palavra "noiva" ficou reduzida a uma sutileza: "véus", no terceiro verso. Fiz isso porque buscava essa condensação e uma espécie de imobilidade que a redução das palavras proporciona. Em sua materialidade, achei que algumas palavras (principalmente aquelas que aparecem no plural), produzem um movimento que me era desnecessário.


Essa idéia persistiu até mudar radicalmente nessas três estrofes: nas duas primeiras eu aumentei o número de versos e decidi mudar a idéia: ela dorme sobre as águas, e o jogo de duplicidades se tornou duplo: ela dorme, suas roupas se movimentam; ela parece estar num leito imóvel, mas a imobilidade aparente do espaço a sua volta é um efeito da morte, e sua indiferença não percebe que na verdade está sendo embalado pelas ondas. O jogo sempre será este de vida e morte, sendo a vida abstraída em movimento e a morte em seu verso.


Na última estrofe retomei a idéia e dessa vez até fiz algumas anotações. Decidi tentar o esquema: dois verbos no 1º verso e um no 4º. Tinha imaginado o 4º verso com dois verbos (diferentemente do 2º e do 3º), mas achei que colocar o adjetivo "trêmulo" já iria introduzir a idéia de movimento por si só. 'Órbita da lua' acompanha os dois verbos dos dois versos: afunda e aprofunda. Achei que esses dois verbos iriam reduzir consideravelmente qualquer noção de movimento, embora temporariamente. A escolha das imagens teve o mesmo fim. Para nossas inteligências a menção de 'órbita da lua' pode facilmente conduzir a uma ausência de centro gravitacional que é próprio deste satélite, sem contar as demais imagens: a lua refere-se à noite, ao onirismo, etc etc. O coração "afundado" na órbita da lua também faz menção a coisas que são subitamente apagadas por essa submersão em algo denso, profundo e anti-gravitacional. O quarto verso traz o verbo "flutuam", que foi uma escolha minha para acentuar a imobilidade (em sua própria construção material), mas trazer a última imagem do penúltimo verso (visão branca de tecidos) de volta a um movimento que lhe seria próprio e que tentei anular neste mesmo verso. Enfim... enfim...


Quero que me digam se consegui alcançar o intentado, e de opiniões também!


Aliás, acabo de me dar conta que "perturbadoramente" em um daqueles versos daquele post aparece grafado errado. Digitação apressada ou descontrolada é bem típico meu!

quinta-feira, 14 de maio de 2009

III

Calados! Um trovão de aço fere o cenho enrijecido do Esposo; em suas têmporas arde o rumor glaciático de nossas palavras, nosso zumbido humano de moscas. Mas, ah! Estúpido! Tu quem o quis, e agora, que acordas na interferência que nossas vozes fazem sobre teus sonhos, dê uma boa olhada em todos os rostos cobertos por máscaras de gesso. Estão todos mortos, entretanto ainda caminham entre os vivos com o passo leve e telepático do grou. - Ainda possuo o corpo do Mistagogo, o sacerdote que lhe ministrou venenos que apenas a natureza profunda dos oceanos engendraria em sua flora monstruosa, e ainda a minha narrativa sorve as faculdades cognoscitivas desse cérebro arrombado em seus cadeados. Vês, ao teu redor? Água, apenas água. Esta negra, constituindo um espelho sobre o qual ninguém ousaria caminhar. Mas você o pode. Seu ventre, devidamente restaurado, agora parece menos pesado, não é? Vomitaste por duas horas consecutivas uma água repleta de ferrugem e de essências violetas. Agora, que seu ventre foi devidamente restaurado, olhe bem para o rosto uniforme dessa dúzia de crianças: estão mortas, mas a suavidade das plumas negras de seus mantos desliza na intemitência da neve que cai na estação chamada de inverno. Alguns a confundiriam com cisnes negros, outros pensariam se tratar de corvos e suas asas com penas de enxofre. Mas não precisas deter muito o olhar em seus rostos secretos: vede suas máscaras; algumas lembram a beleza pétrea de Apólo, e outros a de Faetonte. Alguns são negros, outros são aborígenes, e ainda há mulheres, cujo seio foi nutrido por uma glândula fabricadora de láudano. Você as vê? São suas crianças. São os seus mortos. Eles caminham, e suas posturas lembram a graça profunda do crisântemo. Você está bem? Vejo que voltas a vomitar...
II

Calai-vos, pois o sacerdote fala. É natural a sua língua retórica e retorcida que use a segunda pessoa do plural, apenas para o infeliz caso de alguns de seus púlpitos desconfiar que, na verdade, não se trata de sacerdote algum, mas de alguma espécie de falastrão que ousaria roubar o ouro de suas algibeiras. Não critiquem as palavras e o ambiente consideravelmente anacrônicos para o tempo em que é descrito; ninguém aqui negaria, em seu íntimo, se eu dissesse (e provasse por um definitivo silogismo) que, a modernidade, se constitui como negação em sua superfície e reatualização abaixo dela, de uma época que muito bem poderia ser a dos engenhos de tortura da idade das trevas ou as máquinas divinas de uma Grécia trágica. Calai-vos, pois o sacerdote fala. Trata-se do Mistagogo, o preparador de ânimos; por uma feitiçaria etrusca ele conduziria seu espírito pela meditação abaixo de demagogias baratas e fantasmagorias feitas. Mas você o aceita como pai, e é, pois, o que ele é. Ele é o pai.Seus lábios de cobre parecem proferir um idioma letal de estátua. Meu amigo, pois compreenda agora que, tomando-te por um inciático, seria muito interessante que eu roubasse o pobre corpo desse bandido do intelecto, que te faria honrá-lo e ovacioná-lo por uma sabedoria que ele não possui. Tomarei seu corpo, injetando secretamente larvas que fecundarão em seu crânio enzimas receptoras do campo eletromagnético da minha inteligência. Veja como seus cabelos desgrenhados e louros parecem encobrir o olhar que um coiote lança sobre as ovelhas! - Calai-vos, pois o sacerdote fala. Possuir corpo tão delinqüente para poder mais doutamente iniciá-lo nos mistérios do Sono me atira no abismo desse velho preparador de armadilhas. Se bem me lembro, os ossos de suas costelas já foram afagados por uma maça-estrela, e as pernas carregam pinos de aço cirúrgico oriundos de um atropelamento na confluência daquelas duas parábolas de um certo sonho. Não durma, interlocutor! Permaneça com a cabeça altiva, mesmo que seja difícil colocá-la ereta sobre os ombros e vidrar-me com o olhar. Percebes que o deus de carne anda de um lado para o outro, e do outro para um. Ele não entende exatamente que espécie de calafrio foi aquele, e lembra também que existe, em um noticiário, sérios vestígios de uma pandemia que transforma suas vítimas em porcos.Calai-vos, pois o sacerdote fala. Não se trata de um sacerdote, embora seja religiosamente devotado a sua demência particular. Já atestaram sua esquizofrenia, e seria difícil que outro médico de ânimos o contradissesse. É o Mistagogo. Eu sou o Mistagogo, o preparador de ânimos, e seria natural a minha língua retórica e retorcida que o uso da segunda pessoa do plural vos proteja contra uma possível má intenção. Não farei muito mais que sugar um pouco do fluido cerebral do amor que exala de suas glândulas, mas... ah! fora isso, não há o que se preocupar, veja bem. Você está calado para que eu possa falar qualquer coisa? Vocês se enganam e atestam contra a película que protege vossas mentes da crueza da realidade. Vejo, cada um de vocês, uma pele descolorida sobre um amontoado de plágios. E esta época, por fora uma exteriorização de um sacrifício induzido, sendo por dentro uma complicada trama de instrumentos de tortura da idade das trevas. Vocês não perceberiam as cordas e os seus sistemas de roldanas fazerem com que um deus de olhar autista e gravitante se pusesse contra os vossos olhos, sua túnica de hematita e sua adaga de esmeralda protegendo sua identidade alienígena e sua bissexualidade. Pois calai-vos, pois o sacerdote fala. Se me for permitido andar pela articulação enferrujada e sangrenta desses pinos decompostos, vereis que a minha bacia realiza seu movimento no descompasso de um ritual: quero ensinar-lhe o ritual, amigo, meu querido amigo, mas antes será preciso que você me mate. Vamos, mata-me - perceba o tédio com que digo isso! - pois tudo faz parte de uma teatralização. Assim como a poesia, que você disse ter sido proferida e metrificada pela aleatoriedade das minhas palavras ou pela confusão equívoca do discurso, a poesia é um pouco dessa transgressão, você não acha? Eu não acho. Mas você pode me matar, e então eu lhe ensinarei as delícias da morte quando eu voltar transformado em uma corsa.
Covarde. Pois deixe-me que eu lhe mate, com esta mesma adaga de linho mágico aquecido à temperatura solar. Deixe-me que eu mesmo introduza esse perigoso instrumento contra a tua coronária. Isso............ você percebe? O silêncio, instaurando seus pontos finais, um após o outro, pouco a pouco, um após o outro, pouco a pouco, um após o outro... Pouco a pouco, enquanto a cauterização desse ferimento profundo na tua alma aprofunda, os substantivos vão se tornando numerosos em tua cabeça. Poderias me descrever por quantos elementos quisesses essa dor que te aflinge, que te submerge em pensamentos conflituosos e fábulas de traição. Sou um homem com uma faca e um caráter duvidoso, e você percebe como brilham as pérolas em minha boca? Veja como transborda, tal são ovos brancos e dourados que caem desse súbito afogamento. Meu corpo, cadavérico como o teu, está se tornando menos esguio, mas ontem ele flutuava nas margens do Guaíba umas vezes, outras no leito Rio da Prata, mas sempre com essa membrana de safira cristalizando a procedência da pele. Eu era uma folha azul de algum álamo que foi envenenado. Você sofre o mesmo destino? Não balbucie. Não experimente dores maiores, e isso seria certo caso continuasses tentando me agredir jogando seu tronco para cima. Eu te ponho na câmara do ritual para que descansses sobre um leito acolchoado de pele humana.
Sinta, apenas sinta a dor interpenetrando a camada mole dos teus tecidos rugosos e tua epiderme branca; um pouco da gordura metaboliza essa sinestesia da vida e da morte, em suas terminações nervosas. Calai-vos, pois o sacerdote fala. Quando Hércules era nascido, fui eu, eu mesmo, quem introduziu aquela perigosa naja em seu leito. Quando assomado pela loucura, eu era o arremesso brutal dos seus filhos contra os arrecifes. Seus crânios tombavam como uvas salivando o vinho de sua miséria. Eu era os arrecifes pontiagudos de cristal branco e leitoso. Viste-me quebrar diante das máquinas de vapor do homem, também, mas sempre em minha superfície multi-renovável. Por baixo de minha pele, de homem ou mulher, um volume incomensurável de água em seu estado sólido. Você é assim, também pertencente à mesma nação siberiana cujo ventre carrega um montão de água em seu estado sólido. Você confia em mim? Pois, pouco à pouco, em nosso primeiro ritual, os pontos, um após o outro, abro-os, os pontos e a tua cabeça, substantivada pela dor, tenta, em vão, retalhar o curso frasal da minha sabedoria.
O Sono

I

Negro lamento escapa pelos lábios brônzeos da noiva
- A gravidade de seus olhos afunda.
E seu lombo, coberto pela nudez de tecidos transparentes,
Flutua contra a água do mármore e contra o vento.

II

Escuro lamento escapa da noiva de lábios de bronze
- A gravidade de seus olhos afunda pertubadoramente...
Seu lombo, inundado na mudez de longos tecidos ,
Flutua contra a profundidade do vento.


III

Lamento escuro surge em lábios de bronze
- A gravidade de seus olhos afunda.
O lombo, submerso na mudez de longos véus,
Flutua na profunda lentidão do vento.
Meu pensamento se constitui pela velocidade, pelo automatismo das palavras, mas isso não quer dizer que a livre associação seja o elemento que constitui uma poesia do inconsciente. Na verdade não. A submersão deve ser apenas um mergulho num nível de pré-razão, pré-consciência, onde as coisas (sentimentos, sensações, construções) ainda residem em seu estágio embrionário. Para dizer alguma coisa racionalmente eu precisaria pressurizar esses vapores e então transformar tudo em uma condensação, que representaria apenas um resumo, uns 30% de sua realidade psico-material [?].

Em verdade procuro isso. Como Lautréamont mesmo disse em uma estrofe: ele não estava recaindo no absurdo quando dizia estar inseguro se as colunas que via no vale abaixo dele eram baobás ou coisas menores que dois alfinetes, pois seus olhos estavam sob o efeito das leis da ótica, e àquela distância duas pilastras poderiam, francamente, serem menores que dois alfinetes. A exatidão daquilo que se percebe transpõe os limites do lógico. O lógico é uma construção e uma tradução que tu faz do sentimento puro. O lógico in-forma, através de sua arquitetura natural, as cores que pretendo jogar e pouco informar, senão pelas formas que lhe parecem menos verdadeiras para mim e mais verdadeiras para minha intuição.

O fenômeno da percepção se detém sobre aquilo que nos joga numa zona de estranhamento. Mas, a esse estranhamento, sempre sinto a presença de sua duplicação oposta: uma familiaridade semelhante ao dejá-vu ou ao sonho. Estará o absurdo entranhado em nossa pré-lógica como uma construção imagética do conhecimento, das palavras, uma pré-verbalização daquilo que realmente vamos dizer? Minha linguagem sempre se lançou contra isso. Hoje, por influência das leituras que fiz de Lautréamont e Saint John Perse (bem como Rimbaud, entre outros), não só a imagética mas a sintaxe se deteriora. Os poemas passam a se constituir de imagens puras que, ás vezes, se neutralizam. Essa neutralidade a farejo como um silêncio e talvez um fracasso ao me deixar dominar pelos trânsitos de mundos que coabitam meu corpo.

Para quem lê primeiro esta pequena nota, aconselho a ler o que escrevi sobre o 'Animal-Deus'. É de inspiração Nietzscheana, e também de inspiração no meu espírito atual: um espírito que ousa até mesmo degradar o nome dos gênios, matar sua paternidade assumida e os instrumentos de sua formação. A não-identidade é assumida porque eu mesmo a considero supérflua, e não só isso, como também um obstáculo para a verdadeira realização de um todo.

Não sei mais o que digo, e se o que digo não é absurdamente pretensioso. Ás vezes faço citações de autores que nunca li, apenas para parecer exímio e inteligente. Vocês sempre acreditam, não é? Que eu seja realmente esperto. Mas tudo isso, não querendo passar por mentiroso agora, mas sim me purificar desse estigma, não passa de um processo burocrático e leal: eu conto minhas verdades e vocês acreditam.

Poemas.

Sobre o Sono

O Sono deste homem que deita na esquina de duas ruas parabólicas se confude com a hipnagogia da modernidade.Se está em sua habitual casca de homem negro, o julgarias um refugiado do antigo Quilombo.Se mostra os pelos eriçados e a cabeça de felino cruel, corre, pois é um jaguar cujos olhos de safira opaca petrificariam os
teus órgãos internos.Ele dorme majestosamente. Sua testa, nua ou recoberta de pêlos, parece alvo das assombrações que os homens lhes juram.
Ele permanece búdico, como uma lótus que permite à lâmina da água permanecer planificada e limpa de ondas. Sua ausência
lança os insultos dos homens e a eles próprios em um vazio que sentem sugar o verbo de seus estômagos. O vazio é
profundo. Um poço de água submarina, o gesto lento da asa de um falcão; o espaço em branco poderia ser um espaço em
negro, onde a combustão das cores deixou apenas uma mancha morta de carbono.
Um dia tentou um homem mirar essa miragem. Ele não conseguia compreender que estivesse diante de um corpo, e por isso
mesmo tomou-se por louco.

O Artesão
I
Para fora da película branca que o prende à zona de movimento do ônibus, o som era um prolongamento da histeria. As
buzinas, o ar apedrejado pela gasolina; a combustão das vozes humanas era uma ebulição de qualquer espécie de
auto-violência. O céu estava em sua laringe; espasmo azul contrai os músculos de sua boca. E o desgosto, um aroma intestinal
de secura e adrenalina eletrizada pelos postes, sobe como um batimento descompassado. Ele está tranqüilo em sua
intranqüilidade. E estava só. Atravessavam-lhe oceanos vítreos de vozes, algumas cromadas por um timbre peculiar de
trânsito. Noutra cena, essa figura absurdamente solitária, estaria no oitavo andar de um templo que alguém incendiou. Seu
rosto era cavado por uma velhice perpétua; os olhos tomados pelo centro gravitacional de alguma angústia. O que fazia ele
quando subia o oitavo andar ou rodava pausadamente pelo tráfego insonioso?
De fora do meu verdadeiro corpo possuo a alma de uma mulher que senta-se ao seu lado, a mesma que passa altivamente,
lubrificada por um orgulho ostensivo, pela calçada que ele observa de seu apartamento. Sua figura, longe de ser notável, e por
isso mesmo útil para que eu pudesse observar melhor a ruína deste sábio. Para ela tudo era uma transfiguração, notei eu, de
uma redundância que é a sua existência. Eu o observo mais de perto, agora, enquanto experimento as carnes flácidas do meu
seio esquerdo (pois nunca tive semelhante experiência). Aliás, eu me detive naquele declive de seio, saboreando uma dor
psicótica dramatizada por um câncer anterior. Fiz tudo isso às escondidas, enquanto meus olhos, agora meus e não dela,
suspendiam sua íris contra a janela povoada de lapsos. Como sou uma espécie de parasita, em minha telepatia muda começo
a abrir as malhas de informação que essa mente regulada pelo ressentimento tanto afirmou. Pude saborear, em átimos de
segundo, um pouco dos limiares de suas preocupações, hesitações, medos e sexualidade. Acariciei o labirinto formal do seu
cérebro, e com mão invisível desfiei uma linha de marioneteiro de suas têmporas moles. O lambi, subitamente golpeado pela
fissura nuclear do seu consciente! Imerso em um tanque de leite, ovários repostos pela neutralidade, in-vitro, a criança que
chora nos braços do cirurgião, a parede esmagada contra o envelhecimento, uma formiga e suas patas traseiras pinçando o
medo e sua total depravação. Ela cometia delitos, fantasias... tudo agora se recobrava em uma espécie de cristalização de
ferimento. E sentou-se, eu sentei, tomados, nós dois, como óvulos gêmeos, de uma repulsa natural pela postura do sábio.
Sua fragilidade, a ausência de uma armadura, suas roupas feias e despreocupadas. Ele era magro e esguio. Seus cabelos
eram escuros e sua pele era branca. Julgou a estreiteza de suas omoplatas e a extensão de seu trapézio quando declina em
curva, ou então a composição fisiognômica das linhas do seu rosto; era a anatomia do seu caráter. Eu tinha uma sabedoria falsa para ler aquelas linhas como a uma caligrafia especial da natureza. Um bandido, mas eu o encarava com solidez e majestade, fingindo estar informada sobre seus pensamentos e sobre sua carência de amor. Ele não tinha amor e nem poderia tê-lo. Não entende a gravidade disso, e se entendesse não estaria por aí, vivendo semelhante comédia. Erguia meus olhos, agora azuis, em direção ao cenho relaxado. Queria quebrar sua máscara e enredá-lo com as redes transparentes de uma anestesia. Fazê-lo seria vingar minha infância, que eu não tive, ou a porcelana que eu nunca quebrei. Meu pai era um homem militar, desses que usam botas de couro e possuem um olhar de leopardo. Sua cabeleira era rala e os músculos de seu pescoço o faziam parecer uma pilastra. Um dia quis rasgar sua faringe e seu órgão sexual do qual ele tanto se orgulhava. Lamentaria (e me agradeceria) por ter arrancado de seu corpo o instrumento de sua própria desgraça! Mas tá! Homem-funeral! Tua indiferença me assusta, e agora que sinto, finalmente, que algo acontece comigo (de outra maneira não teria eu a mão sobre a cavidade esquerda daquilo que luto para esquecer), gostaria de perguntar-lhe se conhece o demônio que deita no meu colo e aspira o cheiro feromonal da minha repulsa. Ontem fui desprezada por alguém que me achava ridícula. E você? Não quero falar o que quero falar. Talvez não saiba como dizê-lo. Talvez não haja verbo tão ambicioso. A verbalização é um gesto consensual. Você me leria? Eu não sei o que penso. Acho que penso que não quero ser lida e por isso me cubro com essas roupas negras como folhas de carvão. Meus lábios de enxofre te desagradam? Pintei as unhas com um esmalte semelhante às carnes do meu órgão, e nem por isso alguém repararia...

O Animal-Deus

"A alegoria do espelho é, antes de tudo, uma alegoria do espanto e do irreconhecimento".

Observem esses poemas, amigos, e verão que eles nada mais traduzem que não um crepúsculo da vontade de viver. Em "te."
e "A Queda dos Amantes" há aquela sempre igual e banal inspiração pela mágoa e pelo ressentimento de um falso
amor-próprio. Onde estava com a cabeça esse, muito antes de ser um poeta, grande delirante! Os demais poemas, produtos
de uma euforia industrial trakliana, também são areia do mesmo saco (embora eu goste muito desses versos: "Os mortos
usam máscaras de gesso/ por onde passam destroem antigos retratos e lembranças"). A minha loucura obedecia o curso de
uma melancolia, suas elipses lacrimais e sua dramatização fingida (loucura ou fingimento de uma). Não sou poeta ou artista.
Sou muito diferente deles, podendo ser melhor situado entre os ilusionistas de circo e os cafajestes; sou douto em
fantasmagorias e, embora minha falsa humildade quisesse me colocar na pele de um aprendiz, reconheço que não, que na
verdade sou um grande mentiroso. E vocês, precisamente vocês, meus amigos, digerem as minhas mentiras com os sucos
ácidos de seus intelectos, e ficam maravilhados pela embriaguez que as minhas enzimas e proteínas causam em seus cérebros - em teu cérebro, leitor! - Nada diferente do hipnotismo. Secretamente introduzo elementos estéticos que, por sua ousadia mórfica ou sintática, julgam serem reflexões ou expressões de uma alta arte! Pois foram enganados pela minha teia, seus encéfalos pingados com alguma substância alucinógena que induz artificialmente o maravilhamento e a sensação constante de estarem a ingerir a própria cauda!

Mas chega. O ilusionista está cansado dessa teatralização da loucura e da morte. Vênus, envolvida em panos de chumbo e
zircão, parece também desejar o seu abandono; seu amor necessita de provas, de novos corações para cavoucar, e assim
manter conservado a superfície do seu amor-próprio. Eu ponho a adormecer o homem fraco que arrasta a diluição dos gritos
de vitória de um Prometeu e coloco em cena outro (vocês já puderam sentir o seu gosto antes). Ele não possui nome e se
recusa a ser identificado como qualquer coisa diferente da natureza. Pudesses perceber que mesmo seu adormecimento se
constitui de uma forma bastante agitada. O sono, para esse homem inominável, é, antes de tudo, um abandono que ele faz de uma matéria que não lhe serve para ocupar outra. Decepção! Pois ele volta a habitar seu verdadeiro corpo, como se houvesse dado uma volta metafísica em busca do próprio rabo. Mas não! Em seu retorno, não sem alguma utilidade, ele desaprende a linguagem humana e a linguagem natural dos gestos: seu paladar anseia sabores menos temperados pela razão. Não se trata de loucura. É um homem que escavou a redondeza semi-esférica do consciente para buscar as raízes, o primitivismo da sua alma. Descobriu-se estar atado à terra. Não se trata de loucura, crime, subversão, rebeldia ou doença. Ele desconhece as próprias motivações. É também aquele caráter ríspido demais para viver longe de um retiro. Também desconhece as barreiras humanas contra a prática do canibalismo, em muito se assemelhando àquele gesto ritual e fetichista dos índios da América do Sul, que devoram seus inimigos para descobrir-lhe as estratégias. Ele está em constante trânsito de forças contra tudo o que o cerca, incapaz de amar sem também odiar, ter amigos sem fazê-los inimigos.

Seu gosto especial pelos tecidos humanos revela uma personalidade pouco consciente, diriam! Mas não. Ele é profundamente
lúcido. Em seu olhar notaria o vazio de uma profunda e infinitesimal reticência; o ponto negro semeado em suas órbitas, a
hostilidade que esse ídolo plastificado, ou antes, fossilizado em sua indiferença pela vida ou pela morte, o faz ser, antes de
tudo, odiado. Ele testa sua força, promovendo constantes reviravoltas, instalando intermináveis guerras contra o meio em que vive. Ele não conhece o artifício da revolta e nem deseja alcançar a liberdade, e a prova disso é que eu já o vi fazer sangrar a própria liberdade, espalhando o medo e a repressão. Que fazer com ele? A poesia para ele é uma perda de tempo. Os tesouros, os minerais preciosos, as obras de arte do Renascimento italiano são todas belezas que ele desejaria destruir ou
então manchar com as cores do seu aparente desgoverno. E, apesar de tudo, seria infelizmente muito difícil chegar à essência de sua personalidade centrífuga sem, acidentalmente, parecer poético!

Conheces, amigo, aquelas lendas cultivadas pelos espanhóis da América Central? Os astecas, se ainda existissem, teriam
reconhecido, após um detalhado exame dos ossos de sua mandíbula e seus pré-molares, o seu próprio deus que come
corações. Já ouviram falar? E tamanho teriam sido seus espantos que, imediatamente, sob o auxílio da instrumentação hábil de um sacerdote-necrólogo e seus bisturís de obsidiana, teriam realizado incisões circulares na zona esquerda de sua caixa
toráxica e cavado, além dos ossos que protegem tal cavidade com sua estrutura complicada e horizontal, os tecidos até a
membranosa teia que obstaculiza o espetáculo do coração. Teriam sentido um pequeno enjôo, que normalmente precede
esses eventos epifânicos, mas ali teriam em suas próprias mãos, como uma oferenda improvisada, seus ventrículos ainda
recobertos por uma viscosa capa de artérias. Diriam que ele é o jaguar esperado ou o homem negro que roubaria o sol para
escondê-lo no Atlântico! - há muitas lendas que poderiam ser transpostas para caracterizar o caráter desse homem
inominável, mas todas, sempre por mim, decantadas por uma viciosa arte do sensacionalismo.

Dizem por aí que, durante a única noite de um mês, ás vezes podem encontrar um corpo recoberto pelos trapos de uma
sombra, numa viela metropolitana, sem, contudo, conseguir se aproximar mais de cinco metros. Um sentimento corta
profundamente o coração daquele que ousa se aproximar para descobrir o que é, mas sua mente, desperta e bastante
prudente, o impede de tal, retirando-lhe as rédeas das faculdades locomotoras e o força a recuar, como tomado de um pavor
ou um súbito compromisso que mais adequado parecia atender. Certa vez topei acidentalmente com uma figura alada e outra
que rastejava. Eram animais sombrios que acompanhavam os passos daquele que protegiam; o sábio, cujo espírito era mais
sólido que o dos demais transeuntes, não foi capaz de conter o empalidecimento perpétuo que a visão de menos de 3 metros
lhe causou: a beleza do animal de pele negra e sem cabelos tinha um rasgo profundo no ventre; aranhas o cobriam com sua
teia e passeavam pelo seu encéfalo atônito, cosendo desde seus lobos cerebrais até a intermitência pesada de suas pálpebras. Eram aranhas de prata e ônix, e nada teria sido mais perturbador para o filósofo descobrir que havia sim uma inteligência paciente e bem-articulada por trás do aparente caos do insconsciente. Foi isso, e não o castigo de um cavalo, que levou este homem para sempre às portas acolchoadas da demência.

Lembro-me de já tê-lo visto exibir uma honestidade exageradamente infantil - tomaram-no por arrogante.

Ou quando um homem, prostrado diante de sua nobreza, curvou-se diante de seus joelhos, exibindo o arqueamento de suas
vértebras proeminentes. Eu o vi erguê-lo com espanto diante de si, forçando-o a ficar de pé, e também lhe vi perguntar a este homem recurvado porque ousava jogar ao desprezo o orgulho e a dignidade - o mesmo homem irritou-se e o difamou:
arrogante!

Vejo como ele caminha. Seus gestos são vagarosos; ele quer sofrer o súbito, ele entrega a nuca ao azar. Ele poderia morrer
agora mesmo Não mire seus olhos verdes: eles pertencem ao basilisco, cuja espessura epidérmica recoberta de escamas
parece exalar fatalidade. Ficarias paralítico diante de sua beleza. E então uma chuva cobriria seus passos com tons de cobre
quebrado pela refração abrupta das imagens. Ele teria ido com o pôr-do-sol da tua memória. O tomarás por um artifício dos
teus pesadelos, talvez, mas não o esquecerás.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

O Sono

Meu tórax é uma bomba de areia mole
A sombra das montanhas joga a sua pedra negra no seio dos vales de esmeralda...
Meu tórax - o ar parece gravitante, dotado de um peso lunar e ostensivo.
Tapetes de pupilas desfilam diante de mim.
Emudecimento da neve sobre o parapeito
E o zênite frouxo estacionando o seu rosto de cem kilos sobre os meus ombros.
O céu estava enrugado de nuvens.
E, por sobre a pálpebra dos meus olhos, um cometa negro mancha sua raíz com o metal de uma agulha.
(Meu coração, chora meu coração, lágrimas ebulidas pelo calor de um passo.
O largo charco molhando a espuma de terra
O musgo vermelho no branco do teu globo
As glândulas do meu corpo produzem uma essência mortal de beladona...
E tudo compete para a exaustão desse passo jovem de elefante)


- Sobre esse poema:

Encontro uma espécie de contradição quando escrevo poemas sobre o sono: pela grande numeração de substantivos e imagens, o poema traduz um movimento que seria impróprio para criar uma esfera de sono. As imagens que crio surgiram numa espécie de "aleatoriedade controlada", onde pautei o poema com imagens que melhor traduzissem estados de ânimo que escondo no poema, construindo uma linguagem completamente imagética. Penso que até mesmo a imagem é produtora de movimento, e a variação dessas substantivações cria não apenas esse movimento entranhado no significante, como também no significado (por exemplo: seda trêmula conduziria a imaginação a uma capa de seda tremendo). Algumas palavras não foram cuidadas - aliás, este tem sido o meu prazer: sei que sou capaz de escrever um poema inteiramente pensado, mas me entrego a uma espécie de volúpia em apenas deixar que o absurdo apareça repentinamente no que escrevo. É a característica principal da minha linguagem: seu irremediavel sonambulismo

terça-feira, 12 de maio de 2009

No que concerne à produção de sentido eu sou um suicida do sentido. Essa imagem me parece menos digna para elaborar um caráter a meu respeito, mas talvez a única que me convém no momento. A agilidade das teclas faz com que meu espírito se impulsione em uma digitação febril e automática de tudo aquilo quanto surge em minha mente. Claro que tenho um alvo, mas esse alvo é sentido, é atingido, é destruído com singular surpresa.

Eu acho que a caligrafia me força a reflexão daquilo que escrevo. O computador me dá uma liberdade de ser aquilo que exatamente estou sendo, no gerúndio. A grande sacada da minha destreza datilógrafa é isso: a capacidade de automatizar meu pensamento, como o faço agora.

Minha linguagem busca os desdobramentos do pensamento. A produção de sentido serve a uma espécie de estética da não combinação. Há metáforas-feitas acompanhando alegorias compreendidas apenas pela minha loucura. Se isso for uma loucura e não um excesso perfeitamente normal e aceitável de um pobre coitado.

Até mais ver.
O teu cabelo negro é uma fibra que arranco
Passo as mãos pelo cenho leopardino
Sinto a noite combalindo contra minha carne
Ela a penetra; as veias, intoxicadas pelo inconsciente dos seus astros
Chocam-se ouros. Na boca franzida do teu rosto há um ouro negro, desfacelado.
Trêmula a tua mão, a pego, ela é quente mas as unhas são frias.
Há qualquer coisa de lunar nos teus seios e no teu óvulo. O frio intercala-se com esse olhar submerso e siberiano.
O útero, eu o ouvi chiar como se estivesse cheio de vapor louro intumescendo suas paredes infantes.
Eu comia seus vapores, quando, pela tua vagina, escabelava-te os cabelos e os agarrava como eu o faria com uma corrente e seu criador.


Sinto essa inocência corpórea e circular, querendo retomar o império da carne diante da natureza.
É por isso que a linguagem refrata no prisma: minha carne, extensão de uma sexualidade atomizada pelas vontades de remodelar o universo.
Capricho de deus, pensariam alguns. Sou um Deus, um homem lunar. Meu sangue, ele banharia a constelação boreal do teu baixo-ventre. Pegue um pouco de minhas lágrimas anfitriãs!
Acalma-te... e bebamos um pouco do conteúdo desta ânfora. Ela é de prata e recoberta de opalas. Minha túnica marrom trás à minha figura
um aspecto silvestre, mas, para bem falar a verdade, nunca pertenci à metrópole. Vê meus olhos? Nunca foram manchados pela carbonação da alma.
O pistão do meu cérebro? As máquinas ignoram tal combustão de cores esfaceladas na ametista. Eu sou aquilo que concebo imediatamente, uma espécie
de automatismo da loucura. Sonâmbulo, eu caminho com os passos do sonho, mas não sonho. Eu sou a imediata projeção desse absurdo de estar fora e dentro de mim.
Você conseguiria realizar semelhante performance? As carnes dos meus tecidos revestem o céu azul e rígido. Eu bebi a secura dos mares e guspi as grutas. Cavem,
se quiserem, as grutas em meu coração doente. Ele está cheio de buracos, uma colméia eletrificada pelo aditivo. Sou um deus induzido pelo antibiótico de sua loucura.


Uma gota de chumbo rolou pelo meu olho. O direito, semelhante a uma safira entrecortada por um rubi. A frieza dos minerais arranca do meu espírito suas faculdades mais lógicas, mais recortantes. Meu rosto já fui rentagular um dia, mas agora eu apenas me deixo à sombra de um adormecimento fútil.

A complexidade de um silogismo se mede pela sua capacidade de desdobrá-lo em sete partes.
O poeta precisa ser desintoxicado de tudo quanto leu. Ele precisa combater seus ídolos e matá-los.

Hefesto

A potência do carvão já afundou tuas agulhas nesse vulcão cujo fogo arde o corpo das cobras.
Afundar e arder são teus verbos favoritos. Imagino-o, em tua inconsciência, carregando o peso das ligas de bronze com o ferro extraído do teu ressentimento. O rosto perpetuamente marcado pela velhice.
Na arquitetura da tua fisionomia, grãos de areia negra e azul pendem das rugas; os cabelos arrepiados parecem tremer diante do olhar de mercúrio que o sol um dia te impôs. Eles o cegaram. Eles sim, foram. Quando decapitou o penhasco, não pensastes também em ser um narciso em flor? A flor enganou um túmulo e sua voracidade, este de mármore e linho, recoberto de nuvens. O sol morria de semelhante forma quando vestia sua capa de legista; Os médicos abriam o ventre solar e retiravam dele o fígado as ulcerações no pâncreas. E eu que pensava ser tu um ignorante das fantasias do açúcar!
Mas tu, velho sombrio, apodrecia a noite na sombra do etrusco solitário, aquele mesmo bárbaro afeito à guerra como a sua mãe, e eu? e quanto a mim? Permaneci vegetando, o musgo em minha alma, os tecidos das aranhas enredando meu coração com o silício gelado; talvez fosse assim aquilo que elas previram, que elas bendiziam! Você, me abandonando, matando o Prometeu que fendia meus pulmões, o acorrentando à tua covardia. E eu, curiosa aritmética da morte, pensava ser tu um ignorante das fantasias do açúcar!


O Sono

Na água do terraço o murmúrio cala
Cala-te
A água parada
Cristal ou crista de rosa
Rosa-te. Inerme.
.Pontos.
A serra, estilhaçada em asas, mariposa
Luz contra a sombra opaca.
Bolha de ciúme
teu coração, morno e sangrento, abandona.
O sono público.
O carro e sua transfusão de movimento.
O círculo está morto.
A serpente, enreda teu corpo
Ossos se quebram e paralisam. Agora é elíptico.
O silêncio converge contra meu sono
Atravessa meu pescoço
como um raio
Frouxo, abrupto, frouxo, abrupto; ar límpido
Plano, culminante, gélido.
O sono, frouxo, preso.










O Sono

Louvo a lufada
O vento, a praia, a praia-sol, o fogo ardendo na areia.
Sou como a lua.
O oceano embala seus acordes moles
Desliza sua gota pela vértebra do teu cenho
Sente-o degelando a espinha dorsal, sinto.
A torre, o marfim dos teus ossos moles e elefânticos. Tão pesado.
O mundo, a esfera. O passo submarino da garça.
Clepsidra

Meus amigos, novamente os convoco. A vida é ruim, não é? Foi ruim para vocês. Pois me trouxeram, os bons ventos norte, negros como um helmistíquio repleto de fuligem e de diesel digerido. Sombrio Hefesto, tua cara está horrível esta manhã: teus ossos, uma estrutura aquerôntica de velhice, hoje me parecem a arquitetura da ruína branca dos homens. Pois me trouxeram os bons ventos do norte, negros como um talismã, um fetiche da demência sexual dos animais ferozes: eu vim até vós para devorá-los.
Meus amigos, ofereçam assim o pescoço para a minha mandíbula pouco apetecida. Meus dentes ousarão provar a maciez degradada de suas carnes, a pele sendo repuxada como um tecido sintético de fibra elástica até que o sangue verta num veludo vermelho e fétido. Isso deve doer, mas a dor está tão suculenta. Eu não pratico canibalismo contra vocês, já que não sou homem. Minha humanidade regrediu até a forma furtiva de um leopardo. Até mesmo a minha linguagem está sofrendo sua mutação. E o meu sangue, meu sangue cáustico...

Vocês, amigos, foram atravessados por máquinas de destino. Observei os ponteiros em suas costelas e a espinha como um corredor trêmulo de pingos de água: ampulheta, comprida ampulheta das suas angústias. Vocês conhecem aquele relógio aquático cujo nome não me recordo? Ou aquele relógio de sol, cujo brilho ofuscante não tento mirar? Minhas mãos ganharam pêlos hirsutos como agulhas cirúrgicas de anestésico, de forma que se deitardes o corpo nu e viscoso, nobre amiga, adormecerá em meu lombo, tal és assim, Afrodite pálida que nasce da morte. E tu, amigo desesperado, venha cá. Não tentes fugir. Pois assim o destino e o seu interlocutor desejou que nossos caminhos se cruzassem.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Eu, filho do fenol e do etileno
Estou temporariamente hospitalizado
Por mágoas vãs, por vãos venenos
Que eu bebia quando era amado.

Agora eu ando por aí a esmo
Como um homem sem pátria e sem caminho
E mesmo que eu chore, e mesmo e mesmo
Que eu chore, chorarei sozinho.

Era pra lembrar Augusto dos Anjos, mas de qualquer forma postei (apesar de ser fraco e falso) porque faz muito tempo que eu não lido com ritmo e rima. Eu costumava gostar. Hoje pra mim tanto faz.

Meu trabalho sonoro do poema sempre se voltou mais para o efeito da palavra em si, imagético em sua plastificação sonora. Por exemplo:

"escombro duro de torres" - onde o encontro entre o b-r e a anasalação do o na palavra "escombro" induz uma idéia de gravidade, profundidade e destruição. A letra érre costuma fazer isso quando ela não arranha, mas em 'torres' esse duplo érre costuma me fazer lembrar da aspereza do concreto.

De qualquer forma uma palavrinha rápida sobre esse e o poema anterior: Estou naquele momento infecundo da não-idéia. Parece que escrevo por escrever, sem idéia do que fazer, sem grandes vontades que não a de exercer a técnica pura. Sol Negro saiu bem diferente do que eu queria. Queria algo melhor, não necessariamente maior. Acho que estou esgotado e querendo um tempo longe dessas coisas.

De qualquer maneira espero que não me apedrejem ou me venham consolar. Eu não sou mau amado e nem estou chorando sozinho. É apenas um eu-lírico falsamente inventado. Estou muito bem emocionalmente.

O Sol Negro
Abstração horrível da noite
Ao inverso
As gaivotas, sublevadas pela chuva
Torta
Que banha o coração morto do monte.
Do pico glacial revolto pelo vento
Um grito
Acorda o sol negro.
Um buraco, uma fenda nos meus intestinos
Uma febre que dilacera, mutila o vento
Em fagulhas
Vitrifivitrifificadas.
Onde está a bússola? O sol negro é um abismo para cima.

Limitado

"Eu não posso ter um nome. Não posso dizer um nome. Identidades não se afirmam, não se constroem. Pare de especular sobre ela. Pare já com isso, essa tentativa escrota de se definir limites. O mundo que tocamos, e como nós tocamos, só pode ser o mesmo. Você percebe a limitação que o mundo adquire quando o toca, e ao mesmo tempo a ilimitação dele quando sonha. Você não tem uma subjetividade. Você não é único e nem sequer especial. Foda-se você, humano. Você é infantil, você é poeira nos passos dos grandes (se houve grandes longe das tuas lendas), você, talvez, ainda seja escravo quando tenta libertar-se. Afirmar que você é assim e assado? Quem pensa que é para dizer isso? Morre na ignorância. Você morre, tudo morre quando diz isso, quando ousa dizer isso. As coisas perdem o significado na tua linguagem shakespeareana. O sentido não é mais o mesmo: é a tua reação a um mundo globalizado. É a tua reação à necessidade crescente e vendida de ser único, de consumir coisas únicas. No fundo, uma coisa tão nobre e poderosa quanto o egoísmo humano sequer deve ser especulado: é vivido, é sentido como uma força motriz que dispara das veias, dos ácidos que congelam teus músculos, das contrações da carne tentando vencer os limites ósseos dos teus desejos. Ilimitado, se fosses, não diria teu nome. Tu, homem ilimitado, é qualquer coisa que quiser. Não é nada. É um grande enigma, um enigma horrendo e agressivo. Se uma criatura ingênua se aproximasse de ti, seria estraçalhada, seria devorada pelos teus dentes da tua mandíbula cruel. Tu, enigma, grande enigma, porque não teme a morte? Porque a aceita, tudo o que foi consumido pelo abismo? Porque aceita nossos esforços que, na verdade, quando vem a morte os anula todos, os fazem parecer vãos? Como pode viver assim, sob a proteção desse signo? Realmente não entendo como pode ser tão belo esse não-sentido que dás à vida. Não entendo a beleza que faz com que chores quando observa a fragilidade de uma fina placa de cristal estilhaçando: foi-se uma vida ou um coração, murmurarias, comovido pela beleza do aniquilamento."

segunda-feira, 4 de maio de 2009

"Alguns homens se elevam para cima. Eu acho que o caminho transitório é para baixo.
Repugno todos os libertários. A verdadeira liberdade está na aceitação do todo. Não podemos tomar qualquer partido e nem podemos cair na pretensão de pensarmos possuir algum tipo de identidade. Devemos abdicar dessa merda. A identidade é criançola e limitante. Você deve, se realmente deseja se libertar, seguir por dois caminhos: ou você abdica de tudo ou você abarca tudo.

A individualidade é um rasgo no animal. Somos animais rasgados, mas em essência animais. Entende o beco sem saída? Você não é singular. Não pense que é. Tua individualidade foi forjada para justificar impulsos instintivos. A racionalidade os tornou complexos; o eu surge desse jogo teatral entre a razão e o instinto. "


Sobre a linguagem:

"Não sei se os surrealistas compreendiam a intencionalidade com que guiavam suas experiências. Rimbaud não estava sendo aleatório quando falou sobre seu inferno espiritual.

Há no símbolo uma tensão subjacente: entre a limitação da linguagem e uma espécie de memória cultural que se reatualiza no conflito com essa linguagem.

A linguagem às vezes me parece chegar mais perto desse substrato de memória quando ele se afasta da denotação. Não basta ser metafórico, mas é preciso que a linguagem lide com as apropriações de sentido que o leitor gera, conseguindo vencer assim a barreira mais importante da subjetividade."

Curiosidade

"Estava sentado diante de dois outros jovens. Eles diziam que eram poetas, e assim aclamavam-os. Nessa pequena roda, perguntei o que os motivava a escrever poesia. Uma garota respondeu:

-"Nasci perdida, e a poesia me reencontra no cosmo. Talvez um pouco de mim ainda viva na natureza exótica, nas árvores antigas, nas peônias orientais, no pôr-do-sol sobre o cais, nas viagens às escondidas para a Europa, para a Turquia, para o leste da Ásia, para as ruínas de antigos palácios e lembranças. A poesia vibra em mim como uma vida latente, minha boca quer comer tudo o que dela frutifica, mesmo da árvore proibida, mesmo que seja oriundo das sementes dessa árvore. Estou ensandecida, estou maldita, mas percorro, em busca do amor supremo, mas percorro, sim, esta vida, a poesia é esse caminho nas trevas relampejado pela Iluminação. Acho que nasci das trevas, mas alguém poderia ver que sou, na verdade, um anjo? Um anjo feito de madrepérola, de mármore enriquecido com o toque da escuridão. Meu coração é de metal, mas pulsa sangue quente e vital."

O homem disse, após assentir com a cabeça:

-"Canto sobre a decadência do ser. O ser está decadente; é egoísta, é vil, é pusilânime. O ser está morrendo. O apocalípse se entrevê nas bordas do manto da história, da história que chega ao pé dos nossos ouvidos. Estamos alienados, creio. Alienigenados, criogenados, paralíticos. Canto sobre o sono, versifico sobre a morte. É tudo o que resta. O mundo precisa acabar, para que recomece um novo, onde tudo será permitido: entorpecentes, bebidas, religiões mortas, latim viscerado. Eu estudei latim na escola: vini, vidi, vinci. É o meu lema. Viver para a morte. Fui a ela. A vi. A venci. Gosto de dizer como o sopro mórbido e gelado do inverno roça no Sena, e como Paris afunda nas asas de um cisne, morrendo, morrendo, morrendo na boca famigerada do crepúsculo, sangrenta, amorfa. A poesia é a expressão da pestilência moral. Moral mesmo. Vamos nos curar da peste: morrendo."

Por fim perguntaram-me o que eu achava sobre tudo isso, e quais eram as minhas motivações.

"Não sei por quê escrevo. Talvez apenas para fantasiar a grandeza. Costumava achar que havia um gênio submerso dentro de mim, e eu apenas precisaria agitar o meu corpo para que ele transbordasse pelas palavras. Eu me achava um gênio. Achava que deveria guardar qualquer coisa que escrevesse, porque um dia, pelo simples fato de utilizar um vocabulário empolado e antigo, essas porcarias seriam guardadas e compiladas em um livro especial sobre minha trajetória. "Os esboços de um jovem genial". Pff, que bobagem. Eu me envergonho de escrever poesia. Ninguém deveria me chamar de poeta. Nem escritor. Soa como se eu fosse um otário qualquer. Na verdade não sei se o que escrevo é poesia. Talvez seja invenção. Eu acho que vivo no meu próprio mundo, diferente do da realidade. Talvez não sejam versos, mas a desconexão de uma mente esquizóide, um colapso autista. Não sou louco. Antes fosse, e então seria especial, quem sabe. Não sou. Sou comum, e nem conhecerei nada que não seja. Acho que estou preso na massa, e sou como a massa: fragmentado, diluído e alienado. E eu gosto disso. Acho que ela me protege, e assim o faz com vocês. Eu costumava pensar que tinha nascido para ser grande, e então percebi que havia caído em uma teia de ilusões: eles querem que eu pense que serei grande, e enquanto alimentar esses hábitos aparentemente anormais, e enquanto pensar que sou um pouco acima da média, eles estarão fazendo a manutenção da mídia, das modas, das coisas que parecem de gente especial mas que fazem parte do rebanho. Sou rebanho e até sei mugir. Acho que a poesia é coisa de rebanho. Se eu realmente a compreendesse, pararia agora de escrever. Poesia não se escreve. Se eu fosse mesmo um poeta, não aguentaria viver. Alguns simulam suicídio, alguns escrevem livros, mas eu não sou poeta, exatamente como todos eles. Sou um suicida, sou um cara leviano que faz muito caso de pouco. Tempestades em copos d'água, já viu? Eu sou assim: tremendamente ingênuo"