quinta-feira, 14 de maio de 2009

II

Calai-vos, pois o sacerdote fala. É natural a sua língua retórica e retorcida que use a segunda pessoa do plural, apenas para o infeliz caso de alguns de seus púlpitos desconfiar que, na verdade, não se trata de sacerdote algum, mas de alguma espécie de falastrão que ousaria roubar o ouro de suas algibeiras. Não critiquem as palavras e o ambiente consideravelmente anacrônicos para o tempo em que é descrito; ninguém aqui negaria, em seu íntimo, se eu dissesse (e provasse por um definitivo silogismo) que, a modernidade, se constitui como negação em sua superfície e reatualização abaixo dela, de uma época que muito bem poderia ser a dos engenhos de tortura da idade das trevas ou as máquinas divinas de uma Grécia trágica. Calai-vos, pois o sacerdote fala. Trata-se do Mistagogo, o preparador de ânimos; por uma feitiçaria etrusca ele conduziria seu espírito pela meditação abaixo de demagogias baratas e fantasmagorias feitas. Mas você o aceita como pai, e é, pois, o que ele é. Ele é o pai.Seus lábios de cobre parecem proferir um idioma letal de estátua. Meu amigo, pois compreenda agora que, tomando-te por um inciático, seria muito interessante que eu roubasse o pobre corpo desse bandido do intelecto, que te faria honrá-lo e ovacioná-lo por uma sabedoria que ele não possui. Tomarei seu corpo, injetando secretamente larvas que fecundarão em seu crânio enzimas receptoras do campo eletromagnético da minha inteligência. Veja como seus cabelos desgrenhados e louros parecem encobrir o olhar que um coiote lança sobre as ovelhas! - Calai-vos, pois o sacerdote fala. Possuir corpo tão delinqüente para poder mais doutamente iniciá-lo nos mistérios do Sono me atira no abismo desse velho preparador de armadilhas. Se bem me lembro, os ossos de suas costelas já foram afagados por uma maça-estrela, e as pernas carregam pinos de aço cirúrgico oriundos de um atropelamento na confluência daquelas duas parábolas de um certo sonho. Não durma, interlocutor! Permaneça com a cabeça altiva, mesmo que seja difícil colocá-la ereta sobre os ombros e vidrar-me com o olhar. Percebes que o deus de carne anda de um lado para o outro, e do outro para um. Ele não entende exatamente que espécie de calafrio foi aquele, e lembra também que existe, em um noticiário, sérios vestígios de uma pandemia que transforma suas vítimas em porcos.Calai-vos, pois o sacerdote fala. Não se trata de um sacerdote, embora seja religiosamente devotado a sua demência particular. Já atestaram sua esquizofrenia, e seria difícil que outro médico de ânimos o contradissesse. É o Mistagogo. Eu sou o Mistagogo, o preparador de ânimos, e seria natural a minha língua retórica e retorcida que o uso da segunda pessoa do plural vos proteja contra uma possível má intenção. Não farei muito mais que sugar um pouco do fluido cerebral do amor que exala de suas glândulas, mas... ah! fora isso, não há o que se preocupar, veja bem. Você está calado para que eu possa falar qualquer coisa? Vocês se enganam e atestam contra a película que protege vossas mentes da crueza da realidade. Vejo, cada um de vocês, uma pele descolorida sobre um amontoado de plágios. E esta época, por fora uma exteriorização de um sacrifício induzido, sendo por dentro uma complicada trama de instrumentos de tortura da idade das trevas. Vocês não perceberiam as cordas e os seus sistemas de roldanas fazerem com que um deus de olhar autista e gravitante se pusesse contra os vossos olhos, sua túnica de hematita e sua adaga de esmeralda protegendo sua identidade alienígena e sua bissexualidade. Pois calai-vos, pois o sacerdote fala. Se me for permitido andar pela articulação enferrujada e sangrenta desses pinos decompostos, vereis que a minha bacia realiza seu movimento no descompasso de um ritual: quero ensinar-lhe o ritual, amigo, meu querido amigo, mas antes será preciso que você me mate. Vamos, mata-me - perceba o tédio com que digo isso! - pois tudo faz parte de uma teatralização. Assim como a poesia, que você disse ter sido proferida e metrificada pela aleatoriedade das minhas palavras ou pela confusão equívoca do discurso, a poesia é um pouco dessa transgressão, você não acha? Eu não acho. Mas você pode me matar, e então eu lhe ensinarei as delícias da morte quando eu voltar transformado em uma corsa.
Covarde. Pois deixe-me que eu lhe mate, com esta mesma adaga de linho mágico aquecido à temperatura solar. Deixe-me que eu mesmo introduza esse perigoso instrumento contra a tua coronária. Isso............ você percebe? O silêncio, instaurando seus pontos finais, um após o outro, pouco a pouco, um após o outro, pouco a pouco, um após o outro... Pouco a pouco, enquanto a cauterização desse ferimento profundo na tua alma aprofunda, os substantivos vão se tornando numerosos em tua cabeça. Poderias me descrever por quantos elementos quisesses essa dor que te aflinge, que te submerge em pensamentos conflituosos e fábulas de traição. Sou um homem com uma faca e um caráter duvidoso, e você percebe como brilham as pérolas em minha boca? Veja como transborda, tal são ovos brancos e dourados que caem desse súbito afogamento. Meu corpo, cadavérico como o teu, está se tornando menos esguio, mas ontem ele flutuava nas margens do Guaíba umas vezes, outras no leito Rio da Prata, mas sempre com essa membrana de safira cristalizando a procedência da pele. Eu era uma folha azul de algum álamo que foi envenenado. Você sofre o mesmo destino? Não balbucie. Não experimente dores maiores, e isso seria certo caso continuasses tentando me agredir jogando seu tronco para cima. Eu te ponho na câmara do ritual para que descansses sobre um leito acolchoado de pele humana.
Sinta, apenas sinta a dor interpenetrando a camada mole dos teus tecidos rugosos e tua epiderme branca; um pouco da gordura metaboliza essa sinestesia da vida e da morte, em suas terminações nervosas. Calai-vos, pois o sacerdote fala. Quando Hércules era nascido, fui eu, eu mesmo, quem introduziu aquela perigosa naja em seu leito. Quando assomado pela loucura, eu era o arremesso brutal dos seus filhos contra os arrecifes. Seus crânios tombavam como uvas salivando o vinho de sua miséria. Eu era os arrecifes pontiagudos de cristal branco e leitoso. Viste-me quebrar diante das máquinas de vapor do homem, também, mas sempre em minha superfície multi-renovável. Por baixo de minha pele, de homem ou mulher, um volume incomensurável de água em seu estado sólido. Você é assim, também pertencente à mesma nação siberiana cujo ventre carrega um montão de água em seu estado sólido. Você confia em mim? Pois, pouco à pouco, em nosso primeiro ritual, os pontos, um após o outro, abro-os, os pontos e a tua cabeça, substantivada pela dor, tenta, em vão, retalhar o curso frasal da minha sabedoria.

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