IV
Despedaçado o lamento pinga em lábios de bronze
- Afunda em seus olhos a gravidade lunar.
O lombo, submerso na mudez branca dos tecidos,
Vibra contra a profunda lentidão das águas.
E, por uma onda de aço frio que desata do norte
Juncos de mármore esfacelam a espuma cristalina.
V
A aurora acorda no louro dos seus cabelos.
Negras pálpebras
Encerram uma visão tumultuosa de arrecifes.
Alguns diriam que é um lírio sobre o espelho.
Nos montes
A visão de um astro obsucrecido gela a floresta castanha
Discreto passeia o seu sono sobre folhas de safira
- Pólen lunar a trás para os braços do homem.
VI
Despedaçado lamento sibila em lábios de bronze
Na órbita da lua afunda seu coração.
E, seu corpo, aprofundado na visão branca de tecidos
Que flutuam na profundidade trêmula dos ventos.
Para quem conhece Trakl, não há mistérios. Desde que uma pessoa me conduziu até ele, e até apontou semelhanças (pra mim elas existem porque tanto ele quanto eu fomos leitores de Rimbaud), fiquei marcado por uma poesia, por um estilo, que é dele, e apenas dele, e do qual acabei recebendo influências.
Acredito que receber influências, dialogar com os autores, copiar, superar, recriar... isso tudo faz parte do processo do sistema literário. Ninguém cria nada, apenas recria. O novo é uma utopia, e diriam alguns até que se trata de uma histeria tipicamente romântica.
Não procuro copiar Trakl, mas estou tentando recriá-lo com o meu estilo. Por enquanto não estou fazendo nada muito diferente. A visão de uma mulher adormecida é ainda muito genérica e despersonalizada, e essa despersonalização e esse "conhecimento" das formas femininas ainda é muito típico dele.
O que procurei realizar foi uma construção bem pensada e mostrar como tento fazer isso. As mudanças nas estrofes, como acontecidas nos versos de um post anterior, são mudanças nas palavras, nas ordens delas. São escolhas que faço procurando criar um efeito. Esses efeitos são previsões que faço na reação cognoscitiva (se posso chegar ao absurdo da presunção de dizer isso) do leitor. Sua inteligência irá tornar as coisas que escrevi coisas imaginadas e pseudo-sensitíveis (assim espero). Sua aprovação estética virá daí.
Nesse caso quis criar uma situação que venho criando sempre: o sono. Não sei qual a verdadeira razão dessa fixação, mas parece que venho procurando um estado de crescente imobilidade na poesia. Uma imobilidade que é adquirida apenas pela técnica e pelo pensamento. Tento misturar a reflexão cerebral e os testes que faço com alguma intuição e improviso. Não gosto de ser absolutamente cerebral, mas a paciência que esse tipo de coisa me cobra é quase um caminho para o budismo (hiperbolicamente falando). Essa espécie de poemas, que tenta condensar ao máximo as idéias, e buscar essa suavidade e essa plasticidade, foram muito lateralmente apreendidas por mim por meio dos orientais. Dos japoneses li alguns poucos versos pequenos, mas que não chegavam a ser haikais. Dos chineses li traduções de poemas que foram cantados em música erudita (ou moderna, se o caso for Mahler, acredito).
O sono se transforma em muitas coisas. Em poemas anteriores, eu procurava recriar, com auxílio de uma "escrita automática regulada e decantada", uma atmosfera de lentidão e imobilidade pelo poder de sugestão que as imagens causavam em mim (sou uma cobaia). Dessa vez estou reduzindo as imagens e dando menos movimento, menos corporiedade. A imagem é uma só.
Na primeira série de três estrofes tive uma idéia de improviso: e se eu tentar criar uma espécie de contraste? Talvez ficasse interessante se eu colocar, em uma mesma estrofe, a imobilidade do corpo (o sono) e, ao mesmo tempo, vibrações dos tecidos que o envolvem, tomados pela ação do vento. Eu tentei fazer isso, procurando verbos que melhor representassem em sua construção material esses estados. Nessas primeiras tentativas é possível notar que eu fui reduzindo o número de palavras, até que na última estrofe a palavra "noiva" ficou reduzida a uma sutileza: "véus", no terceiro verso. Fiz isso porque buscava essa condensação e uma espécie de imobilidade que a redução das palavras proporciona. Em sua materialidade, achei que algumas palavras (principalmente aquelas que aparecem no plural), produzem um movimento que me era desnecessário.
Essa idéia persistiu até mudar radicalmente nessas três estrofes: nas duas primeiras eu aumentei o número de versos e decidi mudar a idéia: ela dorme sobre as águas, e o jogo de duplicidades se tornou duplo: ela dorme, suas roupas se movimentam; ela parece estar num leito imóvel, mas a imobilidade aparente do espaço a sua volta é um efeito da morte, e sua indiferença não percebe que na verdade está sendo embalado pelas ondas. O jogo sempre será este de vida e morte, sendo a vida abstraída em movimento e a morte em seu verso.
Na última estrofe retomei a idéia e dessa vez até fiz algumas anotações. Decidi tentar o esquema: dois verbos no 1º verso e um no 4º. Tinha imaginado o 4º verso com dois verbos (diferentemente do 2º e do 3º), mas achei que colocar o adjetivo "trêmulo" já iria introduzir a idéia de movimento por si só. 'Órbita da lua' acompanha os dois verbos dos dois versos: afunda e aprofunda. Achei que esses dois verbos iriam reduzir consideravelmente qualquer noção de movimento, embora temporariamente. A escolha das imagens teve o mesmo fim. Para nossas inteligências a menção de 'órbita da lua' pode facilmente conduzir a uma ausência de centro gravitacional que é próprio deste satélite, sem contar as demais imagens: a lua refere-se à noite, ao onirismo, etc etc. O coração "afundado" na órbita da lua também faz menção a coisas que são subitamente apagadas por essa submersão em algo denso, profundo e anti-gravitacional. O quarto verso traz o verbo "flutuam", que foi uma escolha minha para acentuar a imobilidade (em sua própria construção material), mas trazer a última imagem do penúltimo verso (visão branca de tecidos) de volta a um movimento que lhe seria próprio e que tentei anular neste mesmo verso. Enfim... enfim...
Quero que me digam se consegui alcançar o intentado, e de opiniões também!
Aliás, acabo de me dar conta que "perturbadoramente" em um daqueles versos daquele post aparece grafado errado. Digitação apressada ou descontrolada é bem típico meu!
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