"A alegoria do espelho é, antes de tudo, uma alegoria do espanto e do irreconhecimento".
Observem esses poemas, amigos, e verão que eles nada mais traduzem que não um crepúsculo da vontade de viver. Em "te."
e "A Queda dos Amantes" há aquela sempre igual e banal inspiração pela mágoa e pelo ressentimento de um falso
amor-próprio. Onde estava com a cabeça esse, muito antes de ser um poeta, grande delirante! Os demais poemas, produtos
de uma euforia industrial trakliana, também são areia do mesmo saco (embora eu goste muito desses versos: "Os mortos
usam máscaras de gesso/ por onde passam destroem antigos retratos e lembranças"). A minha loucura obedecia o curso de
uma melancolia, suas elipses lacrimais e sua dramatização fingida (loucura ou fingimento de uma). Não sou poeta ou artista.
Sou muito diferente deles, podendo ser melhor situado entre os ilusionistas de circo e os cafajestes; sou douto em
fantasmagorias e, embora minha falsa humildade quisesse me colocar na pele de um aprendiz, reconheço que não, que na
verdade sou um grande mentiroso. E vocês, precisamente vocês, meus amigos, digerem as minhas mentiras com os sucos
ácidos de seus intelectos, e ficam maravilhados pela embriaguez que as minhas enzimas e proteínas causam em seus cérebros - em teu cérebro, leitor! - Nada diferente do hipnotismo. Secretamente introduzo elementos estéticos que, por sua ousadia mórfica ou sintática, julgam serem reflexões ou expressões de uma alta arte! Pois foram enganados pela minha teia, seus encéfalos pingados com alguma substância alucinógena que induz artificialmente o maravilhamento e a sensação constante de estarem a ingerir a própria cauda!
Mas chega. O ilusionista está cansado dessa teatralização da loucura e da morte. Vênus, envolvida em panos de chumbo e
zircão, parece também desejar o seu abandono; seu amor necessita de provas, de novos corações para cavoucar, e assim
manter conservado a superfície do seu amor-próprio. Eu ponho a adormecer o homem fraco que arrasta a diluição dos gritos
de vitória de um Prometeu e coloco em cena outro (vocês já puderam sentir o seu gosto antes). Ele não possui nome e se
recusa a ser identificado como qualquer coisa diferente da natureza. Pudesses perceber que mesmo seu adormecimento se
constitui de uma forma bastante agitada. O sono, para esse homem inominável, é, antes de tudo, um abandono que ele faz de uma matéria que não lhe serve para ocupar outra. Decepção! Pois ele volta a habitar seu verdadeiro corpo, como se houvesse dado uma volta metafísica em busca do próprio rabo. Mas não! Em seu retorno, não sem alguma utilidade, ele desaprende a linguagem humana e a linguagem natural dos gestos: seu paladar anseia sabores menos temperados pela razão. Não se trata de loucura. É um homem que escavou a redondeza semi-esférica do consciente para buscar as raízes, o primitivismo da sua alma. Descobriu-se estar atado à terra. Não se trata de loucura, crime, subversão, rebeldia ou doença. Ele desconhece as próprias motivações. É também aquele caráter ríspido demais para viver longe de um retiro. Também desconhece as barreiras humanas contra a prática do canibalismo, em muito se assemelhando àquele gesto ritual e fetichista dos índios da América do Sul, que devoram seus inimigos para descobrir-lhe as estratégias. Ele está em constante trânsito de forças contra tudo o que o cerca, incapaz de amar sem também odiar, ter amigos sem fazê-los inimigos.
Seu gosto especial pelos tecidos humanos revela uma personalidade pouco consciente, diriam! Mas não. Ele é profundamente
lúcido. Em seu olhar notaria o vazio de uma profunda e infinitesimal reticência; o ponto negro semeado em suas órbitas, a
hostilidade que esse ídolo plastificado, ou antes, fossilizado em sua indiferença pela vida ou pela morte, o faz ser, antes de
tudo, odiado. Ele testa sua força, promovendo constantes reviravoltas, instalando intermináveis guerras contra o meio em que vive. Ele não conhece o artifício da revolta e nem deseja alcançar a liberdade, e a prova disso é que eu já o vi fazer sangrar a própria liberdade, espalhando o medo e a repressão. Que fazer com ele? A poesia para ele é uma perda de tempo. Os tesouros, os minerais preciosos, as obras de arte do Renascimento italiano são todas belezas que ele desejaria destruir ou
então manchar com as cores do seu aparente desgoverno. E, apesar de tudo, seria infelizmente muito difícil chegar à essência de sua personalidade centrífuga sem, acidentalmente, parecer poético!
Conheces, amigo, aquelas lendas cultivadas pelos espanhóis da América Central? Os astecas, se ainda existissem, teriam
reconhecido, após um detalhado exame dos ossos de sua mandíbula e seus pré-molares, o seu próprio deus que come
corações. Já ouviram falar? E tamanho teriam sido seus espantos que, imediatamente, sob o auxílio da instrumentação hábil de um sacerdote-necrólogo e seus bisturís de obsidiana, teriam realizado incisões circulares na zona esquerda de sua caixa
toráxica e cavado, além dos ossos que protegem tal cavidade com sua estrutura complicada e horizontal, os tecidos até a
membranosa teia que obstaculiza o espetáculo do coração. Teriam sentido um pequeno enjôo, que normalmente precede
esses eventos epifânicos, mas ali teriam em suas próprias mãos, como uma oferenda improvisada, seus ventrículos ainda
recobertos por uma viscosa capa de artérias. Diriam que ele é o jaguar esperado ou o homem negro que roubaria o sol para
escondê-lo no Atlântico! - há muitas lendas que poderiam ser transpostas para caracterizar o caráter desse homem
inominável, mas todas, sempre por mim, decantadas por uma viciosa arte do sensacionalismo.
Dizem por aí que, durante a única noite de um mês, ás vezes podem encontrar um corpo recoberto pelos trapos de uma
sombra, numa viela metropolitana, sem, contudo, conseguir se aproximar mais de cinco metros. Um sentimento corta
profundamente o coração daquele que ousa se aproximar para descobrir o que é, mas sua mente, desperta e bastante
prudente, o impede de tal, retirando-lhe as rédeas das faculdades locomotoras e o força a recuar, como tomado de um pavor
ou um súbito compromisso que mais adequado parecia atender. Certa vez topei acidentalmente com uma figura alada e outra
que rastejava. Eram animais sombrios que acompanhavam os passos daquele que protegiam; o sábio, cujo espírito era mais
sólido que o dos demais transeuntes, não foi capaz de conter o empalidecimento perpétuo que a visão de menos de 3 metros
lhe causou: a beleza do animal de pele negra e sem cabelos tinha um rasgo profundo no ventre; aranhas o cobriam com sua
teia e passeavam pelo seu encéfalo atônito, cosendo desde seus lobos cerebrais até a intermitência pesada de suas pálpebras. Eram aranhas de prata e ônix, e nada teria sido mais perturbador para o filósofo descobrir que havia sim uma inteligência paciente e bem-articulada por trás do aparente caos do insconsciente. Foi isso, e não o castigo de um cavalo, que levou este homem para sempre às portas acolchoadas da demência.
Lembro-me de já tê-lo visto exibir uma honestidade exageradamente infantil - tomaram-no por arrogante.
Ou quando um homem, prostrado diante de sua nobreza, curvou-se diante de seus joelhos, exibindo o arqueamento de suas
vértebras proeminentes. Eu o vi erguê-lo com espanto diante de si, forçando-o a ficar de pé, e também lhe vi perguntar a este homem recurvado porque ousava jogar ao desprezo o orgulho e a dignidade - o mesmo homem irritou-se e o difamou:
arrogante!
Vejo como ele caminha. Seus gestos são vagarosos; ele quer sofrer o súbito, ele entrega a nuca ao azar. Ele poderia morrer
agora mesmo Não mire seus olhos verdes: eles pertencem ao basilisco, cuja espessura epidérmica recoberta de escamas
parece exalar fatalidade. Ficarias paralítico diante de sua beleza. E então uma chuva cobriria seus passos com tons de cobre
quebrado pela refração abrupta das imagens. Ele teria ido com o pôr-do-sol da tua memória. O tomarás por um artifício dos
teus pesadelos, talvez, mas não o esquecerás.
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