terça-feira, 12 de maio de 2009

Clepsidra

Meus amigos, novamente os convoco. A vida é ruim, não é? Foi ruim para vocês. Pois me trouxeram, os bons ventos norte, negros como um helmistíquio repleto de fuligem e de diesel digerido. Sombrio Hefesto, tua cara está horrível esta manhã: teus ossos, uma estrutura aquerôntica de velhice, hoje me parecem a arquitetura da ruína branca dos homens. Pois me trouxeram os bons ventos do norte, negros como um talismã, um fetiche da demência sexual dos animais ferozes: eu vim até vós para devorá-los.
Meus amigos, ofereçam assim o pescoço para a minha mandíbula pouco apetecida. Meus dentes ousarão provar a maciez degradada de suas carnes, a pele sendo repuxada como um tecido sintético de fibra elástica até que o sangue verta num veludo vermelho e fétido. Isso deve doer, mas a dor está tão suculenta. Eu não pratico canibalismo contra vocês, já que não sou homem. Minha humanidade regrediu até a forma furtiva de um leopardo. Até mesmo a minha linguagem está sofrendo sua mutação. E o meu sangue, meu sangue cáustico...

Vocês, amigos, foram atravessados por máquinas de destino. Observei os ponteiros em suas costelas e a espinha como um corredor trêmulo de pingos de água: ampulheta, comprida ampulheta das suas angústias. Vocês conhecem aquele relógio aquático cujo nome não me recordo? Ou aquele relógio de sol, cujo brilho ofuscante não tento mirar? Minhas mãos ganharam pêlos hirsutos como agulhas cirúrgicas de anestésico, de forma que se deitardes o corpo nu e viscoso, nobre amiga, adormecerá em meu lombo, tal és assim, Afrodite pálida que nasce da morte. E tu, amigo desesperado, venha cá. Não tentes fugir. Pois assim o destino e o seu interlocutor desejou que nossos caminhos se cruzassem.

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