quinta-feira, 14 de maio de 2009

Poemas.

Sobre o Sono

O Sono deste homem que deita na esquina de duas ruas parabólicas se confude com a hipnagogia da modernidade.Se está em sua habitual casca de homem negro, o julgarias um refugiado do antigo Quilombo.Se mostra os pelos eriçados e a cabeça de felino cruel, corre, pois é um jaguar cujos olhos de safira opaca petrificariam os
teus órgãos internos.Ele dorme majestosamente. Sua testa, nua ou recoberta de pêlos, parece alvo das assombrações que os homens lhes juram.
Ele permanece búdico, como uma lótus que permite à lâmina da água permanecer planificada e limpa de ondas. Sua ausência
lança os insultos dos homens e a eles próprios em um vazio que sentem sugar o verbo de seus estômagos. O vazio é
profundo. Um poço de água submarina, o gesto lento da asa de um falcão; o espaço em branco poderia ser um espaço em
negro, onde a combustão das cores deixou apenas uma mancha morta de carbono.
Um dia tentou um homem mirar essa miragem. Ele não conseguia compreender que estivesse diante de um corpo, e por isso
mesmo tomou-se por louco.

O Artesão
I
Para fora da película branca que o prende à zona de movimento do ônibus, o som era um prolongamento da histeria. As
buzinas, o ar apedrejado pela gasolina; a combustão das vozes humanas era uma ebulição de qualquer espécie de
auto-violência. O céu estava em sua laringe; espasmo azul contrai os músculos de sua boca. E o desgosto, um aroma intestinal
de secura e adrenalina eletrizada pelos postes, sobe como um batimento descompassado. Ele está tranqüilo em sua
intranqüilidade. E estava só. Atravessavam-lhe oceanos vítreos de vozes, algumas cromadas por um timbre peculiar de
trânsito. Noutra cena, essa figura absurdamente solitária, estaria no oitavo andar de um templo que alguém incendiou. Seu
rosto era cavado por uma velhice perpétua; os olhos tomados pelo centro gravitacional de alguma angústia. O que fazia ele
quando subia o oitavo andar ou rodava pausadamente pelo tráfego insonioso?
De fora do meu verdadeiro corpo possuo a alma de uma mulher que senta-se ao seu lado, a mesma que passa altivamente,
lubrificada por um orgulho ostensivo, pela calçada que ele observa de seu apartamento. Sua figura, longe de ser notável, e por
isso mesmo útil para que eu pudesse observar melhor a ruína deste sábio. Para ela tudo era uma transfiguração, notei eu, de
uma redundância que é a sua existência. Eu o observo mais de perto, agora, enquanto experimento as carnes flácidas do meu
seio esquerdo (pois nunca tive semelhante experiência). Aliás, eu me detive naquele declive de seio, saboreando uma dor
psicótica dramatizada por um câncer anterior. Fiz tudo isso às escondidas, enquanto meus olhos, agora meus e não dela,
suspendiam sua íris contra a janela povoada de lapsos. Como sou uma espécie de parasita, em minha telepatia muda começo
a abrir as malhas de informação que essa mente regulada pelo ressentimento tanto afirmou. Pude saborear, em átimos de
segundo, um pouco dos limiares de suas preocupações, hesitações, medos e sexualidade. Acariciei o labirinto formal do seu
cérebro, e com mão invisível desfiei uma linha de marioneteiro de suas têmporas moles. O lambi, subitamente golpeado pela
fissura nuclear do seu consciente! Imerso em um tanque de leite, ovários repostos pela neutralidade, in-vitro, a criança que
chora nos braços do cirurgião, a parede esmagada contra o envelhecimento, uma formiga e suas patas traseiras pinçando o
medo e sua total depravação. Ela cometia delitos, fantasias... tudo agora se recobrava em uma espécie de cristalização de
ferimento. E sentou-se, eu sentei, tomados, nós dois, como óvulos gêmeos, de uma repulsa natural pela postura do sábio.
Sua fragilidade, a ausência de uma armadura, suas roupas feias e despreocupadas. Ele era magro e esguio. Seus cabelos
eram escuros e sua pele era branca. Julgou a estreiteza de suas omoplatas e a extensão de seu trapézio quando declina em
curva, ou então a composição fisiognômica das linhas do seu rosto; era a anatomia do seu caráter. Eu tinha uma sabedoria falsa para ler aquelas linhas como a uma caligrafia especial da natureza. Um bandido, mas eu o encarava com solidez e majestade, fingindo estar informada sobre seus pensamentos e sobre sua carência de amor. Ele não tinha amor e nem poderia tê-lo. Não entende a gravidade disso, e se entendesse não estaria por aí, vivendo semelhante comédia. Erguia meus olhos, agora azuis, em direção ao cenho relaxado. Queria quebrar sua máscara e enredá-lo com as redes transparentes de uma anestesia. Fazê-lo seria vingar minha infância, que eu não tive, ou a porcelana que eu nunca quebrei. Meu pai era um homem militar, desses que usam botas de couro e possuem um olhar de leopardo. Sua cabeleira era rala e os músculos de seu pescoço o faziam parecer uma pilastra. Um dia quis rasgar sua faringe e seu órgão sexual do qual ele tanto se orgulhava. Lamentaria (e me agradeceria) por ter arrancado de seu corpo o instrumento de sua própria desgraça! Mas tá! Homem-funeral! Tua indiferença me assusta, e agora que sinto, finalmente, que algo acontece comigo (de outra maneira não teria eu a mão sobre a cavidade esquerda daquilo que luto para esquecer), gostaria de perguntar-lhe se conhece o demônio que deita no meu colo e aspira o cheiro feromonal da minha repulsa. Ontem fui desprezada por alguém que me achava ridícula. E você? Não quero falar o que quero falar. Talvez não saiba como dizê-lo. Talvez não haja verbo tão ambicioso. A verbalização é um gesto consensual. Você me leria? Eu não sei o que penso. Acho que penso que não quero ser lida e por isso me cubro com essas roupas negras como folhas de carvão. Meus lábios de enxofre te desagradam? Pintei as unhas com um esmalte semelhante às carnes do meu órgão, e nem por isso alguém repararia...

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