O inverno estava no coração dela. No tórax, também. Toda a vez que tentava a respiração dentro do sufoco, dentro daquele pulmão de lágrima viva, de lágrima morta. Seus cabelos eram afeitos àquela estação que, antes de tudo, era uma estação da própria alma. Seus cabelos... seus cabelos eram de prata e de ouro, não sendo um e outro, apenas uma exteriorização... de si? Dos outros? Da sede por sumir? Suma, Diamond... Corra... O inverno se aproxima do teu coração, e seria realmente melhor mergulhar nesta redoma, esta pequena e aparentemente frágil redoma de diamante.
Andava... O néon, da “Saint-Fuck Chapel”, amarelado, batia nas roupas dela... Neve por todos os lados, e nada.
Nada que não isto, não é mesmo? Um vazio de ter sido traída na infância dos seus sentimentos, ignorada quando tudo o que desejava era ao menos ser ouvida. Era nisso que se detinha, que pensava. Um a um assassinava seus sentimentos. Aos poucos, com o passar dos anos, teve a impressão de ser perseguida por uma sombra: seu Assassino a procurava, ele mesmo, procurava sua alma como uma aranha.
No dia de ontem estaria fugindo dos passos “daquele homem”, aquele homem alto, truculento, grosso, rude, incompreensível... Aquele imaturo. Fugia, e esmagava sua capacidade de sentir fúria, esmagava sua capacidade de se importar se ele a deixaria furiosa. Ele seria seu Assassino? Seria ele um castigo por ter sido tão desumana, tão ressentida ou tão benevolente? O que, por um tempo, lhe parecia amor, aos poucos foi se tornando sombra...
Agora, hoje em particular, ela se punha no lugar onde se conheceram (triste coincidência!), e que era uma das mais horripilantes vistas da Baía de Tóquio: a neve ocupava tudo com um branco que era morte e não vida. Seus cabelos, agora que suas mãos estavam bem postas no parapeito de aço, agora que seus olhos desejavam transfigurar-se em pássaro, agora que... agora que estava só; seus cabelos balançavam como uma promessa solta no vento. Por quê? Porque insistia em procurá-la? Porque insistia em machucar seu coração? Essas perguntas ela tentava afastar, como a uma criatura selvagem e demente.
“Por... quê? Agora que consigo... me isolar, me proteger... Por que vem com esse ar prepotente, mesquinho, egoísta, esfarelar minhas certezas?”
Um arrepio percorreu seu corpo, como a confluência gelada de um rio que deságua em todo o seu interior... era um rio negro que se estendia, com as formas de um homem, sobre seus pés. Sobressaltou-se, e virou, decidida a mandá-lo embora: nada.
O vento carregava as últimas folhas secas... era inverno em Tóquio, a cidade adormecida, a cidade grande, a cidade solitária. Também sentia o tráfego de desejos ruins em suas veias, em seus pensamentos. E a confusão... e as buzinas... e... o cansaço. Sim, o cansaço. Estava cansada de lutar por algo que não tinha, que talvez nunca tenha tido, e nem nunca teria. Estava cansada de um cansaço... que aflinge, que drena, que joga na esquina da vontade de morrer, uma vontade que antecede a ilusão da força, a vontade de ser livre confundida com uma auto-destruição do coração.
Mas onde, precisamente, se situava aquele “voltar-se para trás”? Aquele desconforto...
-“Estou mesmo sozinha.” – voltando-se para a baía. –“Estou sozinha como essas águas, essas lindas águas que permanecerão as mesmas, ainda que o inverno as cubra com o branco, ainda que a primavera instale o sol em suas ondas, ainda que o verão traga muitas flores e chuva, ainda que o outono torne a deixar essas águas cinzas e admiráveis pela sua nobreza e imutabilidade. Estou sozinha, mas não sou água. Estou sozinha, e constantemente amputada por estas estações, que me transmutam, que me insatisfazem. Estou sozinha e fui mudada, mais que pelas estações, mas por você... Que infelizmente foi cruel, que infelizmente não viu, não ouviu, não sentiu, não cheirou o meu perfume quando eu mais precisei. Eu estava machucada, eu estava perdida, eu queria o teu colo, o teu colo quente e macio, a tua proteção vigilante, o teu amor caridoso, as tuas palavras que são ditas ao ouvido, como um segredo nosso e só nosso. Eu queria... e depois de tudo não tive. É hora de partir...? Ás vezes me parece que sim... ás vezes me parece que é assim que o vento é e deseja ser: ele parte quando menos espera, e por isso é belo, e por isso é livre, e por isso não sofre, o mesmo vento que parece desejar partir das correntezas do meu coração...”
-“O vento, sim, é livre... “
Quando ouviu sua voz, um estremecimento percorria a nuca daquela menina. Quando ouviu sua voz, pensou que fosse apenas um truque do vento... e na verdade era: um truque de sua mente.
-“Um truque do vento... para me chamar até ele, a tentar ser como ele?” – ela pôs um dos pés sobre uma barra de aço do parapeito, como se fosse pegar o impulso de um salto. –“Um truque do vento, mas com a tua voz... Você quis ser como o vento, e fugir entre meus dedos, do meu coração? Esse é o teu grande segredo? Essa é a tua grande natureza? Se for... deixo que ele saia de mim, que ele percorra as águas da baía e suma. Porque não vai fazer diferença. Não vai...”
Não vai fazer diferença se ele está ou não. Não vai fazer diferença se a neve é branca ou é vermelha; se o cigarro tem filtro ou não; se a vida vai continuar uma merda ou não, porque o grande assombro era este: não conseguir ser a mesma depois daquilo tudo.
-“Uma bela vista, não?”
-“.......... Há quanto tempo está me seguindo?”
-“Desde que... eu comprei isto.” – mostra um cachorro-quente quase todo devorado, a não ser por um pedacinho. –“Quer?”
-“Não, obrigada.”
-“Está bom.”
-“Deve estar. Aliás, era você agora há...”
Ele permaneceu a fitando. Ela sequer olhava para ele. Mas a cara de King era a de estranhamento: não sabia do que ela falava.
-“Esqueça.”
-“Por que?”
-“Porque esquecer é fácil.”
-“E lembrar é difícil?”
-“Arre. Estou dizendo outra coisa...”
-“E eu lembrei que hoje é o seu aniversário.”
-“É mesmo? Pois pra mim é daqui alguns meses.”
-“Boba: hoje, dia 20 de janeiro... foi quando você me deu aquele murro na cara, lembra?”
Sim, é claro que eu lembro, teria dito ela... Mas que coisa. Faziam... dois anos. Dois exatos anos em que eles haviam se conhecido e ela o teria tomado por um cafetão.
-“Eu não... lembrava disso.”
-“O vento não lembra. A água não lembra, e veja só: permanecem os mesmos.”
-“Do que está falando?”
Ele se aproximou dela e apontou, colocando o pé sobre a mesma barra de aço do parapeito que ela.
-“Eles são tão superiores a nós, né? Eles não sentem medo, não sentem frio ou calor, não sentem saudade, não sentem raiva, não sentem carinho (não transam): são o que são. O vento sempre será apenas o vento, e a água será apenas a água. Não há poesia para eles, não há nada que os complete, porque quando os sentimos notamos que estão completos, que estão certos do seu destino.”
-“...”
-“Eles não podem amar. Eles não podem cheirar. Eles não podem sentir. Eles são...”
-“É o que eu queria agora! Não sentir nada! Isso, essa não-sensação, e essa sensação também, que vem dela, essa sensação de inverno, de paralisia, de sem-gosto, de...”
Quando deu por si, seus lábios estavam colados aos dele, e a sua raiva foi tanta que não demorou em dar-lhe o segundo murro.
-“O que está fazendo!?”
-“Você nunca será como o vento. Meu dentista que o dirá...”
-“Argh. Deixe-me ir... Aqui é... perda de...”
-“Tempo? O vento não perde tempo. Nós que perdemos o tempo quando o vemos passar.”
-“...!”
A mão dele estava sobre a mão dela. E era tão quente...
Foi de-repente... foi tão de-repente...
Que ele a abraçou, forte, tão forte... Que a respiração de um parecia transferir-se para o outro. Ela... ela queria sair, ela queria ficar. Ela... não estava confusa. Não sentia nada. Nem a lágrima que saía furtiva de seu olho.
-“Você é como o vento... Nunca pára no mesmo lugar.” – disse ela.
-“O vento parou quando se deu conta de que não era vento. De que era algo plenamente... isso.”
-“Isso ...o quê?....”
-“...Seu.”
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