Minhas mãos (olho para baixo); entre elas, outra. Outra mão. Outra mãozinha estúpida, nojenta. O quarto: negro, profundo. Mão branca entre minhas mãos brancas. Como um brinquedo moldado em plástico, mas crivado de uma humanidade úmida, sebosa. Tinha dedos frágeis, que se contraíam a cada apertão que eu lhes dava. Talvez eu quisesse estrangular aquelas cabecinhas com unhas moles, aqueles cerebrozinhos brancos, irritantemente brancos. Eu sempre quis estrangular uma criança muda. E não era que nada se dizia? Nada se dizia. O silêncio era aquele pretume disforme, vaporoso. Havia água no ar, e janelas que deixavam aquela matiz de carvão digesto escoar para dentro. Repentinamente, uma mão estava entre as minhas. Plástica e estúpida. Mão branca entre minhas mãos negras. Cortada, como que por grafites enviesados, manchando aquela pureza elefântica, aquela lentidão pálida e doentia que se esgueirava entre minhas palmas. E além daquela mão de deus algum, de santo algum, nada que divisasse: um cotovelo, talvez. – que cotovelo? De quem? Não importa. Um cotovelo cindido por lâmina de alguma sombra, por uma cortina de fantasmas todos calados, todos em postura grave e vertical. – cotovelo, riscado cotovelo, e antebraço, sem veias: a vida ali era discreta e quieta. A perturbação era apenas a minha, escorregadia. Uma perturbação sem porquê. Um aperto misterioso em meus pulmões; minha respiraçãozinha, minha respiraçãozinha débil, esgoelada, soluçante... Por sorte de alguma substância eu sentia meus ossos comprimindo-se; a respiraçãozinha, os pulmões jovens, rosados, como balões vazios, subindo ou descendo; o teto, o teto descendo. Eu sentia as dimensões surdas daquele lugar, próximas, muito próximas; as linhas, a geometria daquele sofrimento enigmático, beijando meu rosto de algodão manchado. O cálculo era preciso. O braço era de uma anatomia perfeita. Eu não era nada, então. Era aquele estímulo, aquelas mãos, aquele pensamento engaiolado, em disparate, debatendo-se contra as barras (e a ilusão, e eu sei que era ilusão, de que o teto baixava e subia); eu era o teu pássaro. E o teu pássaro era alguma coisa ali, estática, longe do futuro e do... Qual! Isso não importa, criaturinha. Eu sequer te vejo. Tu, sem olhos. Tu, sem cabeça ou peito. Tórax, onde? O vazio perscrutável de todas as minhas idéias loucas de que tu era digno, digno. O abismo, a cama. Agora vejo as barras da tua prisão, tua gaiola de ossos de madeira, onde debatiam-se tuas preocupações, tua angústia nervosa e essencial. A cama de mogno, o travesseiro. Nada descansa. Eu parado. De pé. Em velório? Nada morre. Tudo subsiste aqui dentro, como uma água de poço, escura e lodosa; um abcesso, um coágulo misterioso. Aos poucos os teus pés, os teus malditos pés solitário. Cortes de alguma sabedoria cirúrgica, pois eram cirúrgicos os teus pés, duas botas de algum ser humano desprovido de pés. A pele inerte, a pele completamente inerte e parada, como o ar. Um relógio de pulso, estirado no meio; teu cérebro tinha suas engrenagens, seus segundos perdidos, suas horas esperadas. – Agora lembro que vivias correndo de qualquer coisa, e este relógio, de engrenagens soltas, polvilhando o lençol liso com seus fulgores prateados, seus espelhinhos de horror e loucura rodopiantes. E eu, segurando a mão, a mão escura e invisível. Os dedos são retângulos. O braço é retângulo. Tudo à frente se disfarça de nada. Meu braço, esticado como uma cobra ou uma vara de madeira. Eu olho. Toco o alarme. Nada. Nem alarme, nem botão. Meu dedo afunda em qualquer coisa. Meu braço dói. Por que esticado entre aquelas mãos horríveis por tanto tempo? Sentia-a me apertando, me afogando em uma carícia venenosa. Eu já estive aqui antes. E eu espero, espero que o tempo passe; meus pés esticados; minhas mãos esticadas. Estou em alguma dimensão estranha, sem ser sono ou realidade. Hostilidade, sim. Hostilidade a tudo, mas ainda... ainda que pronto para soltar aquele organismo nervoso, ainda assim... mas ainda, ainda que pronto para soltar aquele... mas ainda... ainda que sim, ainda que pronto para aquele organismo me soltar de novo, eu me agarro como a um objeto em pleno mar, e pleno mar é mar em meus ossos, em meu mundo ósseo, em minha dimensão paraplégica, em pleno mar e mar e braços e mar, fúria densa, corpo de água escura revolta, e aquela mão, aquela mão surgindo das vagas e apertando as minhas com um amor soberano, estrelar. Ela deseja me puxar, para além de seu espelho salgado; mas eu não quero, largar ou mergulhar naquele cristal ardente; eu quero ficar aqui, com as minhas coisas, as minhas coisinhas preciosas, os meus ódios e as minhas paixões torpes. E o pássaro, que eu vi desferir o vôo no infinito do mar, desapareceu, roubando minha sombra, minha linda sombra, para sempre; em seu bico, ó diabos, em seu bico ele levou um ramo de mim e o perdeu entre as montanhas golfejantes de escuridão profunda e aquática. E o pássaro, que eu vi desferir o vôo infinito dentro de mim, ele perdeu minha sombra e levou minha paixão torpe e vazia para a espuma e além dessa...
segunda-feira, 15 de agosto de 2011
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário